Contra a privatização do mundo

Em fevereiro de 2009, Daniel Bensaid interrogava-se se a saúde poderia ter um preço, tal como o conhecimento, ou se existe um direito incondicional ao alojamento ou educação. Colocava assim questões fundamentais sobre o processo de destruição neoliberal dos serviços públicos e da lógica de bens comuns.

Manifestação contra o G8, maio de 2011. Foto de Guillaume Paumier/wikimedia commons.

Reduzindo o valor mercantil de toda a riqueza, de qualquer produto, de qualquer serviço, ao tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, a lei do valor procura tornar comensurável o incomensurável, atribuindo um preço monetário ao que é dificilmente quantificável. Como equivalente geral, o dinheiro teria assim o poder de tudo metamorfosear. Agente de uma tradução universal, o dinheiro “confunde e troca todas as coisas, é um mundo ao contrário, a conversão e a confusão de todas as qualidades gerais e humanas.”i A mercadorização generalizada procura atribuir um preço ao que não o tem: “Este esforço para atribuir um preço a tudo o que não se pode trocar agravou-se consideravelmente”, constata Marcel Henaff . “Deslizamos para uma conceção da mercadorização sem limites: tudo se pode avaliar num mercado, portanto tudo se pode vender, mesmo o invendável.”ii

O serviço público pode ou deveria ser gratuito, mas o professor ou a enfermeira devem alimentar-se e vestir-se. Daí a questão atual: a que corresponde então o salário de um professor-investigador universitário? Não vende um produto (um saber-mercadoria), mas recebe uma remuneração financiada pele perequação fiscal atribuída ao tempo de trabalho socialmente necessário à produção e reprodução da sua força de trabalho (tempo de formação incluído). Trata-se somente do tempo passado no seu laboratório ou do tempo passado perante o seu computador (mensurável por um relógio disponível no computador)? Deixará essa pessoa de pensar quando apanha o metropolitano ou faz o seu jogging? Questões tanto mais problemáticas quanto a produção de conhecimentos é altamente socializada, dificilmente individualizável, e inclui uma grande quantidade de trabalho morto. Ora, as reformas em curso tendem a transformar o nosso professor-investigador em vendedor de prestações mercantis. Espera-se, além disso, que venda as suas ideias e conhecimentos cujos procedimentos de avaliação (como a bibliometria quantificável) deveriam medir o seu valor mercantil. Portanto, “entre o dinheiro e o saber, não há medida comum”, como Aristóteles afirmava sabiamente.

A crise atual é uma crise histórica – económica, social, ecológica – da lei do valor. A medida de todas as coisas pelo tempo de trabalho abstrato transformou-se, como Marx o previa nos seus Manuscritos de 1857, numa medida “miserável” das relações sociais. Mas “não se pode gerir o que não se sabe medir”, afirmava Pavan Suikhdev, antigo diretor do Deutsche Bank de Bombaim, a quem a Comissão Europeia pediu um relatório para procurar “uma bússola para os dirigentes do mundo (...) atribuindo muito depressa um valor económico aos serviços prestados pela natureza.”iii Medir toda a riqueza material, social, cultural, com um único critério de tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, torna-se no entanto cada vez mais problemático, dada a socialização crescente do trabalho e a incorporação massiva do trabalho intelectual nesse trabalho socializado.

O tempo longo da ecologia não é mesmo o tempo curto das flutuações da Bolsa. Atribuir “um valor económico” (monetário) aos serviços da natureza defronta-se com o problema espinhoso de estabelecer um denominador comum para os recursos naturais, para os serviços pessoais, para os bens materiais, para a qualidade do ar, da água potável, etc. Seria necessário uma medida diferente da do tempo de trabalho e um outro instrumento de medida diferente do mercado, capaz de avaliar a qualidade e os efeitos e contrapartidas a longo prazo dos ganhos imediatos. Só uma democracia social seria capaz de atribuir os meios às necessidades, de tomar em consideração a temporalidade longa e lenta dos ciclos naturais e de estabelecer os termos das escolhas sociais integrando a sua dimensão ecológica.

A desmercadorização das relações sociais não se reduz a uma simples oposição entre o que é pago e o gratuito. Submersa na economia de mercado concorrencial, a gratuitidade pode revelar-se perversa e servir de máquina de guerra contra a produção de qualidade, que é paga. É o que é ilustrado pela multiplicação de jornais gratuitos em detrimento de um informação e de investigação, que tem o seu preço.

É certo que se pode imaginar e experimentar os domínios de troca direta – não monetária – de bens de uso ou de serviços personalizados. Mas este “paradigma do donativo” não poderia ser generalizado como procedimento de reconhecimento mútuo, salvo concebendo um regresso a uma economia autárcica de troca. Ora, qualquer sociedade de troca alargada e de complexa divisão social do trabalho requer uma contabilidade e um modo de redistribuição das riquezas produzidas.

A questão central da desmercadorização, em consequência, remete para as formas de apropriação e das relações de propriedade, cuja gratuitidade (de acesso a serviços públicos ou a bens comuns) é somente um aspeto. É a privatização generalizada do mundo, isto é, não somente dos produtos e serviços, mas também dos saberes, da vida, do espaço, da violência, que faz de tudo uma mercadoria vendável. Assiste-se assim, em grande escala, a um fenómeno comparável ao que se produziu no início do século XIX com a ofensiva em regra contra os direitos tradicionais dos pobres: privatização e mercadorização dos bens comuns e destruição metódica das solidariedades tradicionais (ontem as familiares e de aldeia, hoje os sistemas de proteção social).iv

As controvérsias sobre a propriedade intelectual são a esse respeito exemplares: “À mais simples ideia suscetível de gerar uma atividade é colocado um preço, como no mundo do espetáculo não há uma intuição ou um projeto que não seja logo coberto por um copyright. É uma corrida para a apropriação com vista ao lucro. Não se partilha nada: captura-se, apropria-se, trafica-se. Virá talvez o tempo em que será impossível avançar um qualquer enunciado sem descobrir que está devidamente protegido e submetido ao direito de propriedade.”v

Com a adoção do acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) no quadro dos acordos da Ronda do Uruguai (que formalizaram a Organização Mundial do Comércio), os governos dos grandes países industrializados conseguiram impor o respeito mundial pela patentes. Anteriormente, não só a sua duração não era universalmente reconhecida, como havia cinquenta países que recusavam terminantemente a patente sobre uma substância e só reconheciam as patentes sobre técnicas de fabricação.

Desde os anos 1970 que se assiste a uma absolutização dos direitos de plena propriedade, a uma formidável apropriação privada pelas multinacionais do conhecimento e da produção intelectual e artística em geral. Perante a eventualidade da disponibilização das bibliotecas para os utilizadores da internet, o empréstimo gratuito de livros foi posto em causa no final dos anos 1980. Desde então, a informação transformou-se noutra forma de capital e explodiu o número de patentes requeridas cada ano. Só por si, a Monsanto, Bayer e Basf apresentaram em 2007 532 patentes dos genes de resistência à seca. Algumas empresas, chamadas de “trolls”, compram carteiras de patentes para atacar judicialmente por contrafação os produtores cuja atividade utiliza um conjunto de conhecimentos inextricavelmente ligados. Esta corrida às patentes gera uma verdadeira bolha e é uma nova forma de limitação ao acesso livre ao saber.

Esta extensão do direito das patentes autoriza o patenteamento de variedades de plantas cultivadas ou de animais de criação, depois de substâncias de um ser vivo, superando a distinção entre invenção e descoberta e abrindo a via para a pilhagem neoimperialista por via da apropriação dos saberes zoológicos ou botânicos tradicionais. O que é grave não é tanto que o patenteamento de sequências de ADN constitua um atentado contra a muito divina Criação, é que a elucidação de um fenómeno natural passe doravante a ser objeto de um direito de propriedade. A descrição de uma sequência genética é um saber e não um fazer. Ora, as patentes e os direitos de autor tinham inicialmente a contrapartida da obrigação de divulgação pública desse saber. Essa regra foi contornada muitas vezes (por exemplo, pelo segredo militar), mas Lavoisier não patenteou o oxigénio, nem Einstein a teoria da relatividade, nem Watson e Crick a dupla hélice do ADN. Ao passo que, desde o século XVII, a divulgação favoreceu as revoluções científicas e técnicas, a parte dos resultados disponibilizados para o conhecimento público diminuiu desde então, enquanto aumentou a parte confiscada pela patente para ser vendida ou obter uma renda.

Em 2008, a Microsoft anunciou o acesso livre na Internet a dados sobre alguns dos seus programas e autorizou a sua utilização gratuita para desenvolvimentos não comerciais. Mas, como imediatamente explicou o diretor dos assuntos jurídicos, Marc Mossé, em entrevista ao Mediapart, não se tratava de por em causa a propriedade intelectual, mas somente de uma “demonstração de que a propriedade intelectual pode ser dinâmica”. Face à concorrência do software livre, os programas mercantis como os da Microsoft foram forçados a adaptar-se parcialmente a esta lógica de gratuitidade, cujo fundamento é a contradição crescente entre a apropriação privada dos bens comuns e a socialização do trabalho intelectual que começa com a prática da linguagem.

A seu tempo, a apropriação privada das terras foi defendida em nome da produtividade agrária, afirmando-se que o seu crescimento era condição para erradicar doenças e fomes. Assistimos hoje a uma nova vaga de regras justificadas pela corrida à inovação e pela urgência alimentar mundial. Mas o uso da terra é “mutuamente exclusivo” (aquilo de que uma pessoa se apropria, outra não pode usar), enquanto o dos conhecimentos e saberes não é rival: o bem não se esgota pelo uso que dele é feito, quer se trate de uma sequência genómica ou de uma imagem digitalizada. Assim, do monge copista ao correio eletrónico, passando pela impressão da fotocópia, o custo de reprodução tem vindo sempre a baixar. É por isso que se invoca hoje, para justificar a apropriação privada, o estímulo à investigação, mais do que o uso do produto.

Ao restringir a difusão da inovação e o seu enriquecimento, a privatização contradiz as pretensões do discurso liberal sobre as suas virtudes concorrenciais. O princípio do software livre regista, pelo contrário e à sua maneira, o caráter fortemente cooperativo do trabalho social que aí está cristalizado. O monopólio do proprietário é contestado não tanto, como no caso dos liberais, em nome da virtude inovadora da concorrência, mas como um entrave à livre cooperação. A ambivalência do termo inglês free, aplicado ao software, faz rimar gratuitidade e liberdade.

Como na época da apropriação das terras, os expropriadores de hoje fingem proteger os recursos naturais e favorecer a inovação. Pode-se-lhes responder como em 1525 o fazia a Carta dos camponeses alemães que se insurgiam contra esta violência: “Os senhores apropriaram-se dos bosques e, se o pobre tem necessidade de alguma coisa, é preciso que pague um preço em dobro. A nossa opinião é que os bosques devem voltar a ser propriedade de toda a comuna e que qualquer pessoa deve ter acesso livre para apanhar lenha sem a pagar. Deve unicamente avisar uma comissão eleita para este fim pela comuna. Assim será impedida a exploração.”vi
 

Contribuição de Daniel Bensaïd para o livro coletivo sob a direção de Paul Ariès, Viv(r)e la gratuité, Editions Golias, 2009. Texto publicado(link is external) no site da revista Contretemps em 21 de marçoTradução de Francisco Louçã.

Notas

i Marx, Manuscritos de 1844.

ii Marcel Hénaff, “Comment interpréter le don”, in Esprit, fevereiro de 2002.

iii Libération, 5 janvier 2009.

iv Daniel Bensaïd, Les Dépossédés. Karl Marx, les voleurs de bois et le droit des pauvres, Paris, La Fabrique, 2006.

v Marcel Hénaff, opcit.

vi Citado por K. Kautsky, La Question agraire, Paris, 1900, p. 25.