Entrevista: Fabíola Cardoso [Newsletter: Lado Esquerdo]
O que é que a levou a tornar-se ativista das causas LGBTQIA+? Quais foram as razões por trás da decisão de militar no Bloco de Esquerda?
Fabíola Cardoso [FC]: Tornei-me uma ativista LGBT quando ainda não havia LGBT’s, havia aquilo a que se chamava o movimento gay e que estava muito associado, em Portugal, às questões da SIDA. O surgimento do movimento gay moderno, que em muitos países resulta associado às questões do Stonewall, em Portugal não aconteceu, porque tínhamos uma ditadura fascista e porque, posteriormente, tivemos uma revolução que, ao contrário daquilo que se esperava, não trouxe liberdade para todos. Foi dito muito claramente que a revolução não tinha sido feita para “putas e paneleiros” e até 1982 foi crime ser homossexual em Portugal.
Convém acrescentar que algumas forças se opuseram fortemente ao surgimento de qualquer tipo de associativismo em Portugal, inclusive na esquerda, onde existiu um boicote explícito a todas as tentativas de que surgisse um movimento, associações ou grupos em que as questões LGBT fossem discutidas. Sempre que, por exemplo, dentro de um grupo feminista a questão do lesbianismo era abordada isso servia como um sinal de alerta de que esse grupo estava a ultrapassar os limites e este era muitas vezes boicotado.
Foi a inexistência de um associativismo menos masculinizado e menos ligado à SIDA que, em 1990, me fez iniciar este percurso de ativismo e tentar juntar em particular as mulheres lésbicas, para saírem do seu silêncio. Já existiam alguns grupos pequenos e muito informais, como a Organa e a Lilás. O Clube Safo nasceu destas raízes e tornou-se uma árvore que tem vindo a crescer desde 1996. Este meu trabalho levou-me a perceber que era essencial fazê-lo dentro da comunidade, dirigido especificamente às lésbicas de forma a promover a criação de uma identidade lésbica positiva, mas só isso não seria suficiente, era necessário desenvolver um trabalho político e de intervenção.
Quando surgiu o Bloco de Esquerda, fui convidada por um elemento da UDP para participar na primeira convenção, foi essa ida à primeira convenção que me levou a perceber que aquele era o espaço político onde a minha luta se podia fazer. Foi muito importante para mim que o Bloco de Esquerda não fosse só um partido político: era um movimento político ao qual se podiam juntar pessoas que não tinham, até esse momento, partido. Penso que foi essa abertura, de organização, de mentalidade e de vontades, que me levou a juntar a este terreno fértil, no qual tem germinado muito do que tem sido o ativismo, o trabalho político e as mudanças legislativas a que temos assistido no país nos últimos anos.
Em relação ao movimento feminista, disse que as lésbicas foram deixadas de parte deste movimento. Na sua perspetiva, porque é que acha que isso aconteceu? Será algo como o que aconteceu com as mulheres negras no movimento feminista norte-americano em que se acreditava que a luta racial prejudicava a luta de classes?
FC: Simplificando, quando o feminismo não é revolucionário acaba por refletir as estruturas de opressão que existem na ideologia que o sustenta. O feminismo em Portugal, especificamente um feminismo mais à esquerda, surge muito sustentado numa estrutura ideológica que privilegiava a luta de classes, tornando todas as outras questões secundárias. Ainda que houvesse um espaço para o feminismo dentro dessa estrutura ideológica, esse era um feminismo que teria de aceitar e prestar subserviência ao primado da luta de classes, a uma certa hierarquia das lutas que dizia muito claramente: primeiro vamos resolver as questões da luta de classes, as outras desigualdades ou se resolvem por si ou se resolvem depois.
As questões da liberdade sexual e das identidades sexuais começam a questionar essa hierarquia, percebendo que, mesmo resolvendo a luta de classes, se não resolvermos a desigualdade de género continuamos com uma opressão gigantesca. Portanto, esta liberdade sexual e estas questões mais ligadas à homossexualidade, mais transformadoras e questionadoras da ordem vigente eram claramente renegadas.
Esta é uma história que ainda está em grande parte por contar, e se calhar não serei eu a melhor pessoa para o fazer, deverão aqueles que estiveram diretamente ligados a esses movimentos fazê-lo na primeira pessoa. Mas lembro-me especificamente de uma mulher que entrevistamos para a revista do Clube Safo que esteve associada ao grupo no Porto que editava a revista Artemisia, que contou quequando nessa revista apareceu a palavra “lésbica”receberam a indicação muito clara de que esses assuntos não eram recomendáveis para aquele tipo de revista e que, se persistissem na publicação, a gráfica onde se imprimia a revista deixaria de estar disponível. Acabaram por não sair mais números da Artemisia. A desculpa oficial para esse boicote era que podia ser prejudicial ou criar uma má imagem. Ora, se a principal preocupação é a imagem, de facto estamos perante uma luta política muito insuficiente.
O Bloco de Esquerda assume as questões LGBT desde o início, o que não quer dizer que não haja trabalho a fazer dentro do próprio Bloco para compreender melhor que a desigualdade baseada na orientação sexual e na identidade de género é também um dos pilares estruturantes do capitalismo e se queremos, de facto, discutir uma revolução ou transformação do capitalismo não podemos fechar os olhos a estas formas de desigualdade e opressão, estruturas opressivas que são tão poderosas quanto a própria desigualdade de classes. Um socialismo que ignora estes assuntos é um agente da opressão e não é aquilo que queremos no Bloco de Esquerda. Logo, devemos fazer este trabalho interno de reflexão e só assim podemos continuar a contribuir para a reflexão e para a transformação da própria sociedade que é o objetivo último da política, seja essa transformação feita através de ações de rua, como as marchas, ou de mudanças legislativas no Parlamento, ou através da nossa representação no Parlamento Europeu.
Sendo que ajudou a criar a primeira associação lésbica em Portugal, o Clube Safo, afirmando que em Portugal não havia ativismo gay/lésbico “suficientemente forte”, acha que isso ainda se verifica? Quais são os desafios atuais desse tipo de ativismo em Portugal?
FC: Existiam várias limitações, havia um ativismo muito masculinizado, pouco politizado, muito centrado em grandes centros urbanos. Eu, como mulher lésbica, que na altura vivia em Aveiro, a única capital de distrito CDS, e tendo estudado em Castelo Branco, não sentia que o tipo de ativismo e de associações que existiam fossemsuficientes.
Neste momento, a situação é bastante melhor, existem muito mais grupos, muito mais coletivos, muito mais associações. Assistimos, por exemplo, à volta da questão das marchas, a uma dispersão geográfica do movimento. Apesar disso,penso que ainda não temos um ativismo tão diverso, tão geograficamente disperso e tão comprometido com as reais necessidades da população LGBT como é necessário, e espero que isso mude nos próximos anos.
Isto não é só fruto das dificuldades inerentes às pessoas e ao movimento LGBT, é também fruto de uma sociedade comum défice de ativismo, de organização, de capacidade de intervenção e até de formação política. Num país em que há 40 anos atrás era crime ser-se homossexual, em que as pessoas cresciam muitas vezes sem ter ouvido palavras que descrevessem a sua orientação sexual e a sua identidade de género que não fossem os piores insultos que podia haver, em que se achava quase inevitável que não houvesse a possibilidade de uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo que fosse saudável, assumida e vivida em sociedade, era quase impossível organizar um movimento. Portanto, é necessário primeiro ter uma identidade pessoal, ter uma estrutura coletiva e só depois avançar para outros níveis de resolução de problemas e de necessidades. Há ainda muito a fazer para transformar a própria sociedade portuguesa de modo a que as pessoas LGBT sejam cidadãos de pleno direito e que possam fazer uma coisa tão simples como dar a mão à pessoa por quem estão apaixonadas na rua.
Ouve-se frequentemente que “já muito foi feito”, no entanto, continuamos a considerar a heterossexualidade normativa, algo ilustrado, por exemplo, pelo ataque de vandalismo em Évora perto do dia da primeira marcha. O que é que está por fazer? Quais são as lutas mais urgentes que o movimento LGBTQIA + enfrenta neste momento?
FC: Esses ataques a que assistimos são odiosos, são lamentáveis, devem-nos envergonhar a todos enquanto sociedade e devem ser claramente condenados não só socialmente, mas em termos de atuação das forças policiais, do estado de direito e de toda a estrutura judicial. Não pode haver impunidade para aquilo que é ódio, violência, intolerância, e para aquilo que é, felizmente, no nosso país um crime. Mas, por outro lado, esses ataques são também uma resposta a uma visibilidade cada vez maior, a iniciativas muito mais concretas, em muito mais pontos do nosso país. Não teria havido aquele ataque se não tivesse havido um conjunto de iniciativas em Évora, incluindo a primeira marcha.
Com isto não estou a dizer que aquele ataque foi legítimo, estou a dizer que é necessário levar as questões LGBT para todos os lugares neste país, é necessário levar as questões LGBT cada vez mais para as escolas, empresas, para a discussão sobre a habitação, trabalho, saúde, e isso vai obviamente criar reações. Essas respostas por um lado são terríveis, têm consequências pessoais, sociais graves, mas por outro lado também são um sinal de que a sociedade está a ser confrontada com um assunto que até agora era tão absolutamente negado, tão absolutamente oprimido que nem sequer se falava dele.
O que existia antes em Évora não era uma sociedade mais livre, o que existia antes em Évora era um heterossexismo, uma cisfobia de tal ordem com uma normatividade tão grande, que o silêncio e a opressão que impunha impedia que as pessoas se tornassem visíveis e isso criava uma paz podre, as pessoas eram tão violentamente oprimidas que nem sequer se manifestavam.
Agora, também acontece neste momento em Portugal um enquadramento político, e nomeadamente partidário, que promove e se aproveita muito claramente das reações a esta visibilidade, forças essas populistas, extremistas, machistas, racistas, xenófobas, e também homofóbicas, transfóbicas e conservadoras que pegam naquilo que aconteceu noutros países do mundo, por exemplo com Trum e Bolsonaro mas também na União Europeia, nomeadamente na Hungria e na Polónia, onde foram promovidas mudanças legislativas que penalizam, criminalizam e tornam alvos de perseguição política as pessoas LGBT e os seus movimentos.
Também em Portugal, existem partidos políticos que vêm à praça pública defender claramente um conceito de “família” como se as famílias LGBT não o fossem.Vêm defender uma espécie de arquétipo de família que corresponde a coisíssima nenhuma, porque até a sagrada família não encaixava nos padrões heteronormativos, cismonoganicos, etc. Portanto, há aqui um aproveitamento político de uma série de fragilidades da estrutura social em Portugal e de desilusões das pessoas com a sua qualidade de vida, que são aproveitadas de uma forma completamente populista, abusiva por estes movimentos fascistas, que não pretendem outra coisa senão impor um regime de privilégio de alguns sobre aquilo que é natural, a diversidade da sociedade portuguesa, e que tendem a arrastar Portugal para um passado que de glorioso não tinha nada, mas que servia os interesses e privilégios de alguns, e vendem isto com uma capa de nacionalismo populista e de regresso a um ideário fantasioso e bafiento.
O que é mais urgente fazer é atuarmos a vários níveis, desde o nível local, mas também ao nível mais institucional, na representação parlamentar do Bloco de Esquerda, no Parlamento Europeu e nas estruturas autárquicas, e todos estes níveis de ação podem e devem coexistir e alimentar-se mutuamente. No Bloco costumamos dizer que está na hora de fazer a luta toda, a bandeira arco-íris no Bloco de Esquerda nunca esteve escondida atrás de uma porta, está sempre presente estejamos nós na rua, num debate, ou em qualquer estrutura política, continuaremos certamente a levantar esta bandeira e a exigir algo tão simples como a igualdade, dignidade e liberdade para todos sermos plenos cidadãos. O facto de o Bloco de Esquerda ter neste momento uma coordenadora nacional que é assumidamente mulher lésbica é a prova maior de como levamos as nossas ações à prática e de como não conseguiremos imaginar uma terra sem amos em que as pessoas LGBT não fossem, também elas, livres.
A Fabíola esteve presente, como parte ativa, na primeira marcha LGBTQIA+ a nível nacional. Fazendo um paralelismo com os dias de hoje, o que é que sente que mudou desde então até à atualidade? Quais foram as principais conquistas?
FC: A ideia de uma marcha LGBT, um evento claramente político, reivindicativo, também celebrativo, à luz do dia, que não fosse um evento essencialmente comercial, surgiu de um encontro do Clube Safo sobre visibilidade lésbica. Propusemos então a outras associações portuguesas da altura a realização de uma marcha. Portanto, fiz parte da organização da primeira marcha LGBT, no ano de 2000.
Existem grandes diferenças entre essa primeira marcha e esta última que aconteceu em Lisboa, conquistamos, e continuamos a conquistar, maior visibilidade. Na primeira marcha a organização produziu máscaras destinadas a distribuir pelas pessoas que quisessem marchar, mas que tivessem razões para esconder a sua identidade. A mensagem era claramente política: nós não temos vergonha, temos razões para ter medo. Se hoje ainda é muito difícil para muitas pessoas participar numa marcha, pelas mais diversas razões, na altura esses riscos ainda eram maiores, portanto, essa é uma grande diferença e uma grande conquista.
Outra grande mudança tem a ver com o número de pessoas. O trabalho que foi feito de levar estes assuntos para a comunicação social, para a discussão pública, para todos os fóruns de discussão política e social, fez com que hoje esta causa chegue a muito mais pessoas. Sairam 30 mil pessoas à rua na última marcha em Lisboa, naquilo que foi certamente a maior marcha LGBT do país, isso é uma grande conquista em relação às primeiras marchas.
Por último, houve também grandes mudanças legislativas no nosso país. Apesar de a situação não ser perfeita, há muitas transformações a acontecer, e o Bloco de Esquerda continua a propor algumas delas, nomeadamente a inclusão da questão trans e da identidade de género na constituição portuguesa e a aplicação da lei da identidade de género nas escolas, que foi agora recentemente aprovada e que é uma questão essencial. Temos de atuar ao nível da educação, atuando preventivamente ao nível da homofobia e da educação para os direitos humanos, sendo que os direitos LGBT são direitos humanos!
Apesar do muito que falta fazer, houve grandes conquistas legais no nosso país, e não vou falar do direito ao casamento que, apesar de ser um marco importante é politicamente bastante questionável, mas vou falar, por exemplo, da inclusão das questões LGBT na educação sexual do nosso país, vou falar na questão de legalmente estar incluído no código de trabalho o critério de não descriminação (apesar da realidade ainda ser bastante diferente disso) e da questão da possibilidade da parentalidade, de ser reconhecido os direitos das famílias LGBT e das crianças que nascem em famílias LGBT. Portanto, houve de facto grandes conquistas tanto a nível social como político no nosso país, ainda que, se calhar, tenha havido mais conquistas a nível legal do que uma verdadeira transformação estrutural da sociedade portuguesa.
Qual o contexto dos direitos LGBTQIA+ em Portugal comparativamente ao resto do mundo?
FC: Nos estudos e nos relatórios que são lançados internacionalmente, pela agência dos direitos fundamentais da União Europeia, ou pelas estruturas a nível da ONU, Portugal aparece numa posição bastante vantajosa quando comparada com muitos outros países a nível europeu. Não acho que isto tenha acontecido por acaso, acontece fruto de muito trabalho e de muita luta politica, mas também acontece porque ainda há muitos países nos quais ser homossexual corresponde a pena de morte, portanto não é só uma questão de mérito nosso é também uma questão de desmérito de muitos países.
Em muitos países há uma perseguição, muitas das vezes oficial, por forças de segurança e pelo estado, das pessoas que são percepcionadas como sendo LGBT, o que faz com que seja relativamente fácil fazer boa figura, sendo que, felizmente não nos comparamos com essas realidades. Apesar desta posição boa que Portugal tem tido, nos últimos anos tem descido ligeiramente no seu lugar, porque há países que estão agora a avançar mais, ou seja, parámos, e é necessário que se retome a dinâmica de melhorias e de alterações para que possamos continuar a estar no pelotão da frente.
O que pensa sobre a chamada “ideologia de género”, algo tão falado em alguns sectores da sociedade, especialmente nos EUA?
FC: A sociedade norte-americana é extremamente complexa, naquilo que tem de, por um lado, profundamente transformador e, por outro, profundamente conservador, retrógrado e até quase primitivo. A ideologia de género foi aquilo em que todas as pessoas com mais de 40 anos cresceram, a ver todo o tipo de desenhos animados que passavam permanentemente um único modelo de sexualidade, uma única maneira de ser feliz na vida e uma única maneira possível de ser rapaz ou rapariga, situação acompanhada de um grande policiamento da sociedade perante qualquer tipo de comportamento que não encaixasse nesta normatividade compulsória e nesta cisnormatividade obrigatória.
Eu e todas as pessoas, pelo menos as da minha geração e se calhar ainda grande parte dos jovens, somos e temos vindo a ser sujeitos a uma ideologia de género muito forte. Quando hoje na sociedade portuguesa parece normal uma rapariga querer jogar futebol, há 20 anos, a ideologia de género vigente impedia essa rapariga de jogar futebol ou se ela persistisse levava-a a ouvir nomes, ofensas, comentários, proibições.Portanto, a ideologia de género não é uma coisa que tenha sido criada agora, a ideologia de género é uma forma de violência criada por um sistema económico, social e político para criar uma desigualdade entre aquilo que é percebido como género feminino e masculino e retirar aproveitamento económico dessa desigualdade. Existia muito fortemente no passado e hoje começa a ser questionada.
Este sistema rígido, binário e profundamente desigual de género tem de ser desmontado. É o que estamos a fazer e aqueles que defendem essa ideologia de género criaram este chavão para nos agredir, para nos insultar, para nos pressionar, para nos levar a questionar e para criar uma imagem social negativa de que nós estamos a tentar formatar as crianças, quando na realidade é exatamente o oposto.
As pessoas LGBT querem que as crianças sejam livres para serem aquilo que quiserem, que sejam, independentemente dos estereótipos que existem na cabeça de outras pessoas, que cada um viva a sexualidade de acordo consigo próprio, com aquilo que sente, com aquilo que quer, com aquilo que o faz feliz. Não respeitar isto é que é tentar impor uma ideologia de género, portanto, esta é uma expressão profundamente revoltante que procura colocar o ónus da culpa no movimento LGBT quando o que acontece é exatamente o contrário, são os conservadores que procuram forçar e obrigar as pessoas a aceitar um sistema de ideologia de género profundamente violento e desigual, não só para as mulheres, mas também para os próprios homens.
Portanto, há aqui que “virar o bico ao prego”, como se diz em bom português, e devolver quando há este tipo de argumentação, algo não muito fácil de fazer porque este tipo de mensagem foi passada através da comunicação social, em particular por um sistema de fake news que deliberadamente transmite informação falsa e que foi utilizado com fins políticos em vários países. Quando, no Brasil se acusava as forças de esquerda de querer distribuir um “kit gay”, que tornaria os meninos e as meninas gay, isto é uma forma de terrorismo que foi praticado com objetivos políticos pelas pessoas que utilizam esta expressão “ideologia de género”, estas pessoas é que querem impor a sua ideologia às outras pessoas e não o contrário. Estes movimentos não morreram nem perderam a força, continuam profundamente organizados, financiados e, também por isso, o movimento LGBT é uma vacina poderosa contra o populismo, contra o fanatismo, contra o fascismo.
Quando a sociedade e a democracia de um país está a ser atacada, as primeiras vítimas são as pessoas LGBT, portanto, pelo estado de liberdade a que as pessoas LGBT estão votadas num país, podemos avaliar em grande parte o estado da própria democracia desse mesmo país. Quando na Hungria ou na Polónia há governos que atacam as pessoas LGBT o que está em curso é um processo de fascização, em que se procura criar uma sociedade baseada no ódio, na destruição, na intolerância e se procuram grupos-alvo para atacar e para culpar.
É muito importante percebermos que o movimento LGBT não tem como objetivo garantir direitos só para as pessoas LGBT, mas também melhorar a democracia de um país e garantir o cumprimento dos direitos humanos para todos. Por isso, o movimento LGBT, pelo menos como o Bloco de Esquerda o entende, está sempre de mão dada com o movimento feminista, com o movimento antirracista, com o movimento pelas pessoas com deficiência, estando sempre numa perspetiva interseccional a questionar todas as formas de opressão e a entender essas formas de opressão como fruto de um sistema político que beneficia e procura fomentar essas opressões. De tal modo que a bandeira do arco-íris foi mudada para incluir as cores do Black Lives Matter e do movimento trans, transmitindo uma lógica de análise política. Até na própria sigla LGBT, o facto de o L estar lá, e em primeiro lugar, e de irmos acrescentando letras também tem um significado político muito grande.
Com o crescimento da visibilidade do movimento LGBTQIA+ muitas empresas acabam por se aproveitar e tentar utilizar esta causa para gerar lucro económico (pinkwashing), algo que, por exemplo, também acontece com as alterações climáticas (greenwashing). Adicionalmente, alguns partidos, como a Iniciativa Liberal em Portugal, usam esta causa e outras como bandeira para camuflar o real interesse na liberdade económica ao invés da liberdade de costumes. Como é que se combate o aproveitamento capitalista desta causa?
FC: Em Portugal, tem havido, como noutros países, uma grande luta entre a manutenção do movimento LGBT mais politizado e mais consciente das transformações políticas necessárias no sistema vigente, e outras forças que procuram, dentro da ordem instituída e dentro do sistema de privilégios que existe, manter o status quo de algumas pessoas.
Felizmente, em Portugal vejo com muita alegria a expansão das marchas que, de um modo geral, são movimentos claramente reivindicativos, politizados e que continuam a ter esta componente que esteve na raiz das próprias marchas. Quando a primeira marcha surgiu já existia uma festa chamada pride, organizada por uma associação que ainda existe atualmente, a ILGA Portugal, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. Essa festa, que era maravilhosa e continua a existir, é um movimento noturno com os seus objetivos comerciais que tinha e tem um significado político muito forte, mas não era suficiente. Não era suficiente, para as lésbicas que não se viam representadas naquele momento, não era suficiente para a criação de um movimento LGBT que não estivesse do lado do pinkwashing e daqueles que queriam fazer negócio ou vender os seus produtos e passar uma imagem “LGBT friendly” num determinado mês.
A Iniciativa Liberal apregoa um modelo de liberalismo de costumes que, a existir numa sociedade em que alguns têm liberdade económica e outros continuam a ser explorados, continuará a ser um sistema de liberdade de costumes só para alguns. Portanto, não basta haver liberdade moral sem questionarmos todas as outras formas de opressão, porque nesse caso esse privilégio será atribuído apenas a alguns. É claramente insuficiente dizer que somos liberais em termos de costumes e continuar a defender um sistema que gera desigualdade, por isso o Bloco de Esquerda tem uma visão e uma leitura muito mais correta das causas da desigualdade, da opressão, das pessoas LGBT e de muitas outras pessoas. Só numa verdadeira análise de transformação social e de questionamento do sistema económico e político dominante é que encontraremos uma sociedade livre para todos.
Isto será uma luta que vai continuar porque as pessoas LGBT são um público-alvo muito apetecível em termos económicos e a pressão existente é que, à medida que o movimento LGBT vai conquistando este espaço de reconhecimento social, vá havendo cada vez mais empresas que se queiram associar. Tem sido uma luta constante que em Portugal temos conseguido vencer. Noutros países já chegamos a ter momentos de clara ruptura onde há um pride, um movimento de pinkwashing, e uma marcha mais politizada. Espero que isto não aconteça em Portugal e que se mantenha o que são iniciativas comerciais como iniciativas comerciais e que outro tipo de iniciativas de transformação social e política consigam manter esse cariz, pois são essenciais para o desenvolvimento das pessoas, para a transformação social e política da sociedade portuguesa que está muito longe de ser perfeita.
Enquanto um casal de duas raparigas lésbicas tiver medo de dar um beijo na escola temos muito a fazer, enquanto um casal de rapazes gays tiver medo de andar de mão dada na rua temos muito a fazer, enquanto uma pessoa trans se sentir ameaçada e for alvo de ameaças, simplesmente por existir e andar na rua, temos muito a fazer e nenhuma dessas situações vai ser resolvida por nenhuma marca, nem por nenhuma bandeirinha num logo de uma grande empresa durante o mês de Junho.
Quer deixar algum comentário sobre este tópico que não tenha conseguido desenvolver durante a entrevista?
FC: Gostava de dizer duas coisas, a primeira é que as marchas são de facto eventos muito poderosos e que têm surgido para responder às verdadeiras dificuldades das pessoas, tanto de visibilidade, de organização e de mudança, mas também já aconteceram para responder a questões muito mais concretas e dramáticas,or exemplo, a marcha do Porto surgiu em resposta à morte de uma transsexual, da Gisberta. Há uma ligação muito forte entre a história do movimento LGBT e a história das próprias marchas que ainda está por contar.
A segunda coisa que gostava de dizer é que é também muito importante que continue a existir uma ligação forte das associações jovens às marchas. É para mim muito gratificante ver em várias marchas o envolvimento das associações de estudantes do ensino superior, porque isto promove duas coisas, por um lado o associativismo académico, que é importante, por outro a relação desse associativismo académico com o mundo que está fora do espaço da academia. O próprio movimento LGBT tem beneficiado muito do trabalho feito ao nível das academias e da investigação científica sobre este assunto, sendo muito bom que haja na academia uma formação integral que permita que os jovens sejam confrontados com estas questões LGBT e saiam das universidades não só com um currículo numa área científica, mas também com uma perspetiva mais alargada, mais livre, mais abrangente daquilo que é a diversidade sexual humana.
Sou professora e acho que essa é a principal força de transformação do mundo, a Educação, e penso que esse é um dos campos em que ainda há muito a fazer, uma educação sexual verdadeiramente inclusiva, livre e uma academia onde as pessoas possam ensaiar e viver livremente, aprender e adquirir ferramentas para a construção de uma sociedade em que a bandeira do arco-íris e as pessoas LGBT estejam presentes em todos os locais. Se não estão, neste momento, é porque esses locais não as acolhem, é porque sentem medo, é porque têm razões para não assumir a sua identidade, porque as pessoas LGBT existem em todas as universidades, em todas as fábricas, em todos os campos, todos os locais da sociedade portuguesa, na maior cidade e na aldeia mais pequenina. Para isso tem que haver da parte da sociedade um compromisso sério com a transformação social necessária. A próxima marcha em Leiria será mais um pequeno grão de areia nesta mudança. Espero que a marcha de Leiria continue a ser mais um momento de cidadania e de liberdade, cada vez mais participada, mais ligada à realidade não só da própria cidade, mas também do distrito.
Entrevista realizada por Rita Gageiro