Mapear os abusos, combater a desproteção
O site despedimentos.pt, criado a 25 de março de 2020 pelo Bloco de Esquerda, continua a receber todos os dias dezenas de denúncias. O objetivo desta iniciativa era o de mapear a irresponsabilidade patronal em tempos de pandemia, de criar uma plataforma de denúncia de abusos nas relações laborais, que permitisse estabelecer um retrato do que está a acontecer neste campo e que se constituísse como uma ferramenta de intervenção política ao serviço do mundo do trabalho.
Tendo sido já identificadas, no primeiro Relatório, algumas das principais estratégias patronais a partir de vários exemplos que as ilustravam, apresenta-se neste relatório intermédio um novo balanço breve sobre os principais abusos laborais e também sobre a desproteção no mundo do trabalho, a partir dos dados disponíveis e das denúncias entretanto recebidas.
Até ao momento chegaram ao site despedimentos.pt 1054 denúncias, correspondentes a um universo de 102 mil trabalhadores. Essas denúncias vêm de todos os setores e todos os distritos e regiões autónomas. A sua distribuição territorial confirma a preponderância das denúncias com origem em Lisboa (32,6%), Porto (19%) e Aveiro (7%), bem como denúncias de empresas cuja estratégia de abuso opera em todo o território nacional (8,3%)
A maioria das denúncias reporta-se a abusos ocorridos no comércio e serviços (540 denúncias), seguido de indústria (242) e transportes (81).
As empresas puseram em práticas várias estratégias para, perante a crise pandémica, fazerem recair os custos imediatos da paragem económica sobre os trabalhadores. Nalguns casos, aproveitaram mesmo o contexto criado pelo surto epidemiológico para violar direitos elementares que a lei protege e para despedirem trabalhadores ou fazerem cessar os seus contratos.
Assim, o principal motivo das denúncias recebidas diz respeito, tal como acontecia já nos primeiros 10 dias, a trabalhadores precários que foram descartados pelas empresas. O despedimentos.pt recebeu 383 denúncias relativas a este aspeto. 36% das denúncias referem este tipo de prática empresarial, que, como se sabe, passou por desembaraçar-se, ás vezes forçando a letra da lei, dos trabalhadores cujos vínculos são mais frágeis: i) trabalhadores em período experimental, que foram os primeiros a serem dispensados por estarem totalmente desprotegidos; ii) trabalhadores a recibo verde, que ficaram sem atividade sem que tenha de haver fundamento por não terem um vínculo enquadrado pela lei laboral mas pela “prestação de serviços”; iii) os trabalhadores intermediados por empresas de trabalho temporário ou empresas prestadoras de serviço, alegando-se ter caducado o motivo que fundamentava a colocação ou a contratação por parte da empresa utilizadora; iv) os trabalhadores contratados a prazo, dispensados no final do termo temporário do contrato, ou às vezes antes mesmo, à margem da lei.
É importante destacar, a este nível, várias denúncias de trabalhadores despedidos que trabalhavam em serviços públicos, mas externalizados e intermediados através de empresas privadas (caso das cantinas, limpeza, entre outros). É particularmente flagrante que o Estado não tenha acautelado a proteção destas pessoas.
Dignos de nota são também os casos de muitas empresas que despediram trabalhadores precários antes de recorrerem ao lay-off, o que revela que a permissividade da lei do lay-off, ao não exigir como contrapartida do apoio público a prorrogação dos contratos a prazo e dos contratos com os trabalhadores a recibo verde economicamente dependentes, desprotegeu estes trabalhadores.
O segundo principal motivo de denúncia foram os despedimentos de trabalhadores com contrato efetivo, que está presente em 28% das denúncias realizadas, com 293 casos que foram reportados ao despedimentos.pt. Muitas vezes, como se sabe, os patrões recorreram à tentativa de converter despedimentos em rescisões por um alegado “mútuo acordo”, na verdade forçado. Noutros casos, os trabalhadores foram confrontados com a ausência total de informação e contacto com as empresas, mediante o encerramento da atividade. Neste campo, vale ainda a pena salientar que houve já, entre março e abril, 122 despedimentos coletivos, que abrangeram 1095 trabalhadores.
O terceiro principal motivo das denúncias diz respeito ao incumprimento das regras de saúde e segurança no trabalho, concretamente às normas de proteção para conter a pandemia. Em muitos setores, designadamente dos serviços, da indústria e na construção civil e das atividades de saúde e de apoio social, os trabalhadores relatam não lhes terem sido fornecidos os equipamentos de proteção individual necessários. O sentimento de inação por parte da Autoridade para as Condições de Trabalho cria um sentimento de grande impunidade. No caso dos trabalhadores de funções essenciais em contacto direto com grupos de risco (como acontece com atividades de saúde e de apoio social), a quem se recusou a atribuição de um subsídio de risco, esta questão ganha especial relevância. É também um indicador importante para a fase de desconfinamento, já que um dos aspetos fundamentais que é preciso assegurar para a nova fase é a garantia de condições de proteção e segurança para todos os trabalhadores.
Os cortes salariais, falta de pagamento pontual da retribuição e salários em atraso é uma das categorias que mais cresceu nas últimas semanas. Era relativamente residual no primeiro relatório que elaborámos, a 7 de abril, e é agora referida em mais de 13% das denúncias, o que corresponde a 139 denúncias que dizem respeito a mais de um milhar de trabalhadores.
O quarto motivo mais frequente das denúncias foi a imposição unilateral do gozo de férias. Trata-se de uma estratégia generalizada em todos os setores de atividade, que atinge centenas de milhares de trabalhadores. Frequentemente, os patrões servem-se do desequilíbrio das relações de trabalho para imporem e até para suscitarem um acordo sob pressão dos trabalhadores. Para um contingente muito significativo de trabalhadores, 2020 será um ano sem férias, dado que o seu gozo foi forçadamente realizado num contexto de confinamento.
Duas outras áreas de abuso que parecem estar em crescimento dizem respeito ao abuso nos horários, a imposição de bancos de horas e “down days” e irregularidades no lay-off simplificado (designadamente pessoas que, estando com contrato suspenso, continuam a trabalhar).
Mantêm-se ainda algumas centenas de denúncias sobre recusa ou incumprimento do teletrabalho (motivo de denúncia muito frequente nos primeiros dias após o lançamento do site, nomeadamente no setor dos serviços administrativos, de apoio call-centers). Nesta fase, há também apreensões sobre o teletrabalho que resultam já da experiência vivida. A passagem repentina para o teletrabalho avolumou em muitos casos a quantidade de tarefas, prolongando a jornada de trabalho. A situação agrava-se no caso dos agregados com mais do que uma pessoa em teletrabalho, ou com filhos menores e em idade escolar. A conciliação entre o teletrabalho e o acompanhamento a filhos menores é uma fonte de ansiedade, angústia e até desespero, para além do acréscimo de despesas ou das questões relacionadas com a desigualdade de cobertura de rede ou de acesso à internet.
Os dados sobre proteção social mostram um grande aumento de desemprego. Em abril, estavam registados 377.484 desempregados. Ou seja, houve neste mês mais 56.320 desempregados inscritos no centro de emprego, se comparados com março
O ritmo de crescimento do desemprego não foi acompanhado pelo mesmo crescimento do subsídio de desemprego. Ou seja, uma parte significativa dos novos desempregados não têm acesso ao subsídio de desemprego, por não cumprirem os prazos de garantia.
No final de março havia pelo menos 272.789 desempregados sem acesso ao subsídio de desemprego.
Há setores que parecem estar particularmente desprotegidos. As trabalhadoras domésticas assalariadas são um exemplo desta realidade. Estima-se haver em Portugal 105 mil trabalhadores do serviço doméstico. Só 2.358 tiveram apoio da Segurança Social apara apoio à família, o que corresponde a uma percentagem de 2%. Tendo em conta que as trabalhadoras domésticas não têm, na prática, acesso ao subsídio de desemprego, por existir uma parte importante de trabalhadoras informais neste setor, mas ainda porque aquelas que estão inscritas na Segurança Social têm um regime próprio de enquadramento, que as priva de proteção no desemprego se descontarem a partir do valor convencionado (o que acontece na esmagadora maioria dos casos) e se não tiverem um contrato a tempo inteiro (o que é raro). Assim, estas trabalhadoras contam-se entre as particularmente desprotegidas e dependentes da “boa vontade” dos patrões.
Havia, a 29 de abril, 180.005 trabalhadores independentes que pediram apoio por redução de atividade. O valor máximo que receberam em abril é de 292€ (valor relativo a março, pago a 28 de abril). Ou seja, o valor que receberam este mês tem um teto máximo, no apoio concedido pelo Estado, que é mais de 200 euros inferior ao limiar de pobreza.
Para além disso, há vários trabalhadores que foram excluídos, seja por erros burocráticos, seja por fazerem parte da direção de associações, mesmo que sem fins lucrativos. Um dos principais critérios de exclusão foi o facto de se ter negado este apoio aos trabalhadores independentes no primeiro ano de isenção. As estimativas apontam para que só por via deste critério possam ter sido excluídos do apoio 28 600 trabalhadores independentes.
Entre os trabalhadores do setor da Cultura, 98% dos artistas viram trabalho cancelado, segundo um inquérito promovido pelo CENA-STE e 85% dos profissionais das artes e do audiovisual trabalham a recibo verde. Um outro inquérito, da Academia Portuguesa de Cinema, aponta para o facto de 80% dos profissionais na área do cinema terem ficado sem qualquer rendimento em março. O valor máximo que estes profissionais receberam em abril é, como trabalhadores independentes, de 292€. Estima-se em 50 milhões as perdas de receita bilheteira para espetáculos ao vivo, cinema e museus em março, abril e maio.
O Bloco de Esquerda recebeu também, num formulário próprio, autónomo em relação ao despedimentos.pt, 1065 respostas de advogados e solicitadores (79,8% de advogados, 20,2% de solicitadores). Estas respostas apontam, em 97,4% dos casos, a relação com a CPAS (Caixa de Providência de Advogados e Solicitadores) como o principal problema sentido por este grupo de profissionais.
A pandemia pôs assim em evidência a desproteção social da grande maioria dos advogados, solicitadores e agentes de execução e a inadequação de um sistema previdencial privado pensado para um perfil de profissional liberal que a massificação e a proletarização da profissão afastaram sem remissão. É preciso sublinhar que o valor fixo que advogados e solicitadores têm de pagar à CPAS mensalmente 251,38€ independentemente de quanto ganhem (a partir do quarto ano). São muitos milhares os/as que deixaram de ter rendimento para o poder fazer e que não têm da CPAS qualquer apoio extraordinário que se assemelhe ao que a Segurança Social passou a aplicar aos trabalhadores independentes seus beneficiários. O resultado é uma experiência de desespero sem fim à vista e sem qualquer apoio social na doença, maternidade, assistência à família, ou quebra de atividade.
DENÚNCIAS FEITAS AO DESPEDIMENTOS.PT POR SETOR
DENÚNCIAS FEITAS POR DISTRITO
ABUSOS MAIS FREQUENTES NAS DENÚNCIAS RECEBIDAS PELO DESPEDIMENTOS.PT
As últimas semanas têm revelado o modo como, em contexto de crise pandémica e de paragem de alguns setores de economia, se amplificam as consequências do padrão de emprego precário que persiste no país. Os precários foram as primeiras vítimas da estratégia de muitas empresas perante a paragem de uma parte da economia, tendo havido milhares que já perderam o emprego, inclusive em empresas que vieram a ser apoiadas posteriormente pelo Estado.
Evidentes têm sido também as fragilidades da proteção social, que deixa de fora centenas de milhares de trabalhadores. Mesmo no caso de medidas excecionais e de apoios extraordinários aprovados já em contexto de emergência, os níveis de cobertura e o valor das prestações substitutivas de rendimentos atiram centenas de milhares de pessoas, como acontece com os trabalhadores independentes e empresários em nome individual, para uma situação de pobreza. Noutros casos, como acontece com advogados e solicitadores, essa proteção é inexistente. A informalidade das relações de trabalho, nomeadamente em setores como o serviço doméstico ou o turismo, é também um pesado fator de desproteção.
Por outro lado, permanece em Portugal um gritante hiato entre a lei e a prática, com inúmeras violações da legislação laboral a serem cometidas impunemente, perante as dificuldades ou a inação da Autoridade para as Condições de Trabalho.
Este período tem sido também marcado por um conjunto de exigências que se vão intensificar na fase seguinte, de progressivo desconfinamento. A garantia de condições sanitárias de proteção para todos os trabalhadores, que não têm sido garantidas, bem como o devido enquadramento do teletrabalho, em relação aos quais tem havido abusos quer no que diz respeito aos tempos de trabalho quer no que se refere à privacidade dos trabalhadores, são desafios que se colocam ao mundo do trabalho, às organizações sindicais e à regulação política.
O Bloco de Esquerda tem procurado dar visibilidade às denúncias que vem recebendo, confrontando as autoridades e o Governo, apoiando os trabalhadores e propondo medidas que possam contribuir para responder aos problemas identificados. Nesse sentido, e tendo em conta o diagnóstico que é já possível fazer, são prioridades imediatas as seguintes.
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Impedir o abuso e Reforçar fiscalização
Impedir mais despedimentos, desde logo em empresas com lucros e em empresas apoiadas. As medidas de apoio à manutenção do emprego devem assim incluir como contrapartida a obrigação de as empresas retomarem a vigência dos vínculos que fizeram cessar já depois de decretado o estado de emergência. Devem, do mesmo modo, ser prorrogados os contratos temporários. As empresas devem ainda estar proibidas de, neste período, distribuir dividendos.
É imperioso o reforço da Autoridade para as Condições de Trabalho. As medidas anunciadas pelo Governo, designadamente a antecipação do prazo de conclusão do estágio de 44 inspetores-estagiários, são insuficientes face à dimensão da tarefa de uma autoridade com estas características. É preciso não apenas colocar ao serviço o conjunto dos inspetores recrutados pelo último concurso externo, como ainda aproveitar essa reserva de recrutamento para reforçar a ACT. Também técnicos superiores devem ser contratados. O novo período que se iniciará a partir de 4 de maio, com mais de um milhão de trabalhadores em lay-off e exigências sanitárias acrescidas para o regresso à atividade, vai exigir uma presença muito mais forte da ACT no terreno, contrariando o clima de impunidade que é sentido nos locais de trabalho.
O Estado tem a obrigação de dar o exemplo, também com os trabalhadores em outsourcing. As centenas de trabalhadores de áreas como cantinas das escolas, vigilância, limpezas de vários serviços públicos, técnicos de audiovisual na televisão pública, entre outras, que, mesmo trabalhando em serviços públicos, ficaram sem emprego por se encontrarem intermediados por empresas prestadoras de serviços, é inaceitável. O Estado tem o dever de acautelar a manutenção de todos esses postos de trabalho.
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Não deixar ninguém sem rendimentos
O facto de a maioria dos trabalhadores desempregados não ter acesso ao subsídio de desemprego é um indicador da necessidade de alterações profundas, quer do ponto de vista do combate aos vínculos temporários, quer no alargamento da proteção social. A diminuição dos prazos de garantia do subsídio social de desemprego e do subsídio social de desemprego devem ser uma prioridade, como aliás já foi proposto pelo Bloco. A criação, como aconteceu no Estado Espanhol de um subsídio de desemprego temporário, sem prazo de garantia, é uma urgência para garantir que os novos desempregados não ficam sem qualquer apoio.
A universalização da proteção social deve abranger os trabalhadores informais. Os critérios apertados e o tempo que ainda demora a atribuição do Rendimento Social de Inserção são incompatíveis com a urgência desta resposta. Pode e deve haver intervenção legislativa também a este nível.
A resposta aos trabalhadores a recibo verde tem vindo a minar ainda mais a relação entre estes trabalhadores e a segurança social. Em contexto de crise, aos trabalhadores que viram diminuídos drasticamente os seus vencimentos, ou mesmo anuladas todas as suas atividades, deve ser atribuído um apoio que não seja nunca inferior ao Indexante de Apoios Sociais (438€), aumentando a partir desse patamar em função dos descontos. O apoio deve ser também redesenhado para incluir todos os que, até agora, têm sido excluídos, como os trabalhadores isentos no primeiro ano.
Devem também ser atendidas situações de particular desproteção. Advogados e Solicitadores devem ser excecionalmente incluídos nos apoios da Segurança Social. Devem também ser criados, como foi já proposto para a cultura e para outras áreas, Fundos Especiais para setores de atividade particularmente afetados.
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Garantir a proteção de quem trabalha e preparar o desconfinamento com a participação dos trabalhadores
Os trabalhadores que não estão em teletrabalho devem ter a garantia de segurança nas suas deslocações, bem como acesso aos equipamentos de proteção e de respeito, por parte das empresas e serviços, de todas as normas sanitárias. Trabalhadores que façam parte de grupos de risco devem ver garantido o direito a permanecerem em teletrabalho mesmo depois das medidas gerais de confinamento, e devem ser dispensados de prestação de trabalho, sem perda de remuneração, sempre que as funções não sejam compatíveis.
Todos aqueles e aquelas que desempenhem funções essenciais relacionadas com limpeza urbana e de equipamentos públicos, segurança e vigilância de equipamentos públicos, profissões da área da saúde, recolha de resíduos, acompanhamento nas instituições de acolhimento de idosos, crianças ou pessoas com deficiência, transporte e comércio de bens de primeiro necessidade e que estejam em situações de especial risco devem ter direito a um suplemento remuneratório por riscos.
O regresso, em condições de proteção e segurança, à atividade, deve ser preparado garantindo a participação dos trabalhadores, designadamente por via dos seus representantes sindicais, de comissões de trabalhadores ou de comissões de saúde e segurança no trabalho, quando existam. Deve ser também acompanhado de uma fiscalização séria, para garantir que os trabalhadores não são expostos a riscos desnecessários e que as entidades patronais cumprem as regras sanitárias e os direitos de quem trabalha.
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O novo período que vivemos é particularmente exigente. A luta contra a precariedade e a especial responsabilidade do Estado nesse campo, o combate contra a impunidade e pela efetividade do direito do trabalho, o impulso à contratação coletiva para responder a novos temas, o investimento público contra-cíclico para a criação de emprego e a reorientação produtiva para as necessidades sociais fundamentais são alguns dos eixos da resposta da esquerda que coloca a valorização do trabalho no centro da sua ação política. Nada disso se fará sem a participação organizada do mundo do trabalho. É também para esse objetivo que o despedimentos.pt pretende dar um contributo.