O fogo voltou. Vivemos numa caixa de fósforos?
22 de Julho de 2019, 14 horas e 52 minutos, em Castelo Branco, no fogo de Vila de Rei, encontram-se 1050 operacionais, 327 carros de bombeiros e 13 aviões a combater incêndios florestais que iniciaram no dia 20 de Julho, pelas 14h50, segundo o site fogos.pt. Perderam-se muitos hectares de floresta, habitações, infraestruturas diversas, destruiu-se a economia local que suportava a vida de muitos residentes. Vivemos esta realidade em Portugal em vários anos consecutivos. O Governo tomou medidas de reforço da proteção civil, obrigou ao reforço das faixas de gestão de combustível, mas este tormento não desapareceu e além de toda a destruição de recursos naturais, continua a colocar muitas vidas humanas em risco. A solução passa por mudanças estruturais na política florestal e de gestão do território, que não limitam apenas a monocultura do pinheiro bravo e do eucalipto, mas impulsionam também o crescimento de florestas com espécies autóctones e o desenvolvimento socioeconómico dos espaços rurais, permitindo a fixação da população. Esta mudança não se concretiza no terreno no período de vida de um Governo (4 anos), mas desde 2017 já houve tempo suficiente para mudar a política florestal nesse sentido. Infelizmente, essa não foi a prioridade do Governo, nem parece fazer parte das intensões do Partido Socialista.
Que floresta temos hoje?
A floresta representa o principal uso do solo em Portugal, representando os espaços silvestres cerca de 67% do território nacional, no entanto, apenas 46% dos espaços florestais possuem cadastro predial e 20% do território não possui dono ou este é desconhecido segundo os dados de perfil florestal divulgados pelo ICNF em 2017. Em 2010, a superfície florestal nacional era de 3,3 milhões de hectares, dos quais os povoamentos florestais ocupavam 92%. Os Pinheiros Bravos representavam 21% dos povoamentos florestais, os eucaliptos 25%, os sobreiros 24%, as azinheiras 11%, os carvalhos 2,2% e os castanheiros 1,4% (6º inventário florestal, ICNF). A floresta e os espaços associados contribuíam para a economia com 982 milhões de euros (produção 63%; proteção 10%; conservação 6%; silvo-pastorícia, caça e pesca 22%) segundo a Estratégia Nacional para as Florestas de 2006. Contudo, o rendimento e o emprego silvícola reduziram 32,8%, e 13,2%, respetivamente, entre 2000 e 2011 (GPP, MAFDR).
Em Portugal apenas 3% dos terrenos florestais são detidos por entidades públicas, 6% por comunidades locais (baldios) e 92% pertencem a várias centenas de milhar de proprietários privados. Entre os privados, 67% têm uma dimensão inferior a 5 hectares, totalizam 26% da área florestal, não fazem qualquer investimento e apenas metade destes obtém rendimento da floresta embora de forma irregular. O pinheiro bravo é a espécie dominante entre os proprietários com menos de 5 hectares e o eucalipto entre os proprietários com 5 a 100 hectares. Os proprietários com mais de 100ha dominam 55% do território florestal, com maior expressão do sobreiro e da azinheira (Estratégia Nacional para as Florestas de 2006).
A situação nacional contrasta com a realidade da união europeia, onde 40% da floresta é de propriedade pública e o Estado tem por isso muito maior capacidade de intervir sobre o território. Da totalidade da área florestal nacional, apenas 29% possui plano de gestão florestal, correspondendo, grosso modo, a matas públicas, propriedades de maior dimensão e às zonas de intervenção florestal (ICNF, 2017).
As ameaças
Os incêndios florestais, a seca, as pragas e as espécies exóticas invasoras representam as principais ameaças naturais para a floresta nacional (ICNF, 2017). Segundo um estudo da Universidade do Minho e da Universidade de Coimbra, entre 2003 e 2012, arderam cerca de 117 mil hectares por ano, destacando-se o ano 2003 com 377 mil hectares ardidos e o ano 2005 com 290 mil hectares. Neste período identificaram-se mais de 16 mil ocorrências, tendo-se registado em 4 anos várias ocorrências superiores a 10 mil hectares. Mas o pior ano de que há registo é mais recente, em 2017 arderam 539.921 hectares, dos quais 61% eram povoamentos florestais, 32% matos e 7% áreas agrícolas (PORDATA). Ao mega-incêndio de Pedrógão Grande, que ocorreu em Junho, juntou-se o das matas litorais, em outubro, tendo devastado uma enorme porção de floresta pública com funções essenciais de proteção costeira e conservação de habitats, localizada nos distritos de Leiria e Coimbra. 2018 foi também um ano drástico, desta vez para o algarve, pois arderam cerca de 27 mil hectares no incêndio que iniciou em Monchique, tendo o ICNF registado perto de 40 mil hectares ardidos até ao mês de setembro em território nacional. Na sequência dos diversos incêndios as espécies invasoras têm vindo a conquistar terreno e a causar imensos danos ecológicos, é o caso das acácias que não têm qualquer interesse económico, mas também do eucalipto, que é a espécie florestal mais cultivada em Portugal.
Décadas de política danosa
A análise aos fogos florestais ocorridos é reveladora de muitas das dificuldades atuais na gestão do território florestal além das fragilidades do sistema de proteção civil. O interior do país foi massacrado durante as últimas décadas pelo envelhecimento da população residente e pelo despovoamento impulsionado por políticas que degradaram serviços essenciais ao desenvolvimento local, destruíram emprego e geraram maior insegurança para as populações. Entre outras consequências, cresceu o abandono das áreas agroflorestais. Os Governos passados deixaram uma pesada fatura às populações do interior.
A política florestal produtivista secundarizou os serviços de ecossistema prestados pela floresta, desde a preservação de biodiversidade à regulação do ciclo da água, da qualidade do ar e do bem-estar das populações ou a adaptação às alterações climáticas, e possibilitou que uma espécie invasora, o eucalipto, seja considerada prioritária nos Planos Regionais de Ordenamento do Florestal (PROF). Os atuais PROF, apesar de publicados em 2019, aparentemente não refletem nenhuma aprendizagem dos grandes fogos de 2017, nem consideram as áreas ardidas nestes anos, além de terem sido estruturados a partir de muitas estatísticas desatualizadas, de um inventário florestal referente ao ano 2010. Abriram as portas à indústria da celulose que se alastra consumindo recursos numa economia de casino. A indústria joga tudo no eucalipto, esperando cortar a madeira antes que a mesma seja consumida pelo fogo. Com frequência convencem proprietários a ceder as terras, plantam, fazem os primeiros cortes, que são mais remunerados no mercado, e deixam o último para o proprietário como forma de pagamento. Deixam também um solo infértil, esgotado e com as raízes por arrancar que acaba muitas vezes abandonado no fim do ciclo.
A atual política florestal destrói recursos naturais, desertifica o país e compromete o desenvolvimento e a qualidade de vida das gerações futuras. Este caminho é duplamente ruinoso, porque além do desastre os governos passados decidiram sempre aplicar dinheiros públicos para financiar as monoculturas de pinheiro e eucalipto.
Precisamos de uma mudança estrutural para a floresta portuguesa
Com uma gestão florestal desadequada nas suas práticas, em condições climáticas de risco crescente e com a uniformização massiva de materiais combustíveis resultante do predomínio das espécies de crescimento rápido, os incêndios são um enorme flagelo em Portugal. Viver em clima mediterrânico significa lidar com o fogo, mas o país não pode continuar a ser uma caixa de fósforos. Só o abandono da política produtivista, baseada na monocultura e em práticas destruidoras de recursos naturais pode, eficientemente, garantir a segurança contra incêndios e melhorar a qualidade de vida da população a médio prazo, em especial nas zonas rurais. Para responder a esta necessidade o Bloco de Esquerda propõe um programa de transição ecológica agroflorestal, que integra a agricultura e a floresta, permitindo a desintensificação. Diversifica as áreas agroflorestais e valoriza a produção de proximidade e os serviços de ecossistema prestados por estas atividades. Desta forma, combate a monocultura e reduz os consumos de energia, adubos, pesticidas e outros fatores poluentes, aumentando a resiliência do território e dos sistemas agroflorestais, não apenas aos fogos mas também às alterações climáticas. É possível percorrer este caminho e garantir os necessários níveis de produção de bens agrícolas e florestais, aumentando também os rendimentos de quem trabalha neste sector. É urgente uma gestão dos dinheiros públicos que responda às necessidades da população em vez de alimentar o atual modelo de negócio da indústria agroflorestal e das celuloses.