A pandemia e a desigualdade - estamos todos no mesmo barco?

São os países mais vulneráveis que enfrentam maiores dificuldades e são as pessoas mais vulneráveis, com menores rendimentos, menos estabilidade laboral e menos acesso a cuidados de saúde que sofrem um impacto maior. Tudo isso vai refletir-se na profunda recessão que se avizinha. Por Vicente Ferreira.

O surto de covid-19 e as medidas de distanciamento social apanharam as pessoas de surpresa e provocaram alterações de rotina profundas. Dada a natureza imprevisível do vírus, muitos dizem que estamos na presença de um “choque simétrico”, isto é, algo que afeta todos por igual (países e pessoas) e em que todos sofremos as consequências. É isso que se tem verificado?

Recentemente, tem-se dado mais atenção ao impacto desigual do vírus nas sociedades. A desigualdade começa por se notar entre os países: enquanto as economias mais avançadas dispõem de mecanismos de mitigação dos impactos económicos – por exemplo, a atuação dos bancos centrais na injeção de liquidez nos mercados que permita conter o pânico dos investidores e facilitar as condições de financiamento dos Estados (evitando que os juros da dívida pública disparem) – os países em desenvolvimento não têm a mesma sorte(link is external). O peso da dívida, a queda dos preços das mercadorias que estes países exportam (não eram tão baixos desde 1970) e a fuga de capitais que já está a ocorrer(link is external) levam a que enfrentem o que em economia se chama uma "travagem repentina" (sudden stop), que dificulta o combate à pandemia.

É o caso de África(link is external): à medida que o coronavírus se começa a propagar no continente, a crise económica que se seguirá começa a desenhar-se. A quebra no preço e na procura de matérias primas exportadas por estes países pode levar a perdas de 100 mil milhões de dólares, de acordo com a Comissão Económica das Nações Unidas para África. Ao El País, o comissário do Comércio da União Africana, Albert Muchanga, disse que “todos os países [africanos] enfrentam o risco de escassez de bens, aumento do desemprego e subida generalizada dos preços.” Achim Steiner, diretor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), admite(link is external) que a pandemia “pode ter consequências catastróficas”. Num continente onde a pobreza e a ausência de condições para o isolamento em várias zonas tornam o combate ao vírus especialmente difícil, a ausência de recursos dos sistemas de saúde e segurança social agrava o problema – Steiner defende que “esta não é apenas uma crise de saúde, mas também uma crise humanitária e de desenvolvimento”.

Em Joanesburgo, a maior cidade da África do Sul, estima-se que haja entre 180 mil e 750 mil pessoas a viver em cerca de 20 mil barracas. Nas favelas, a falta de condições de isolamento e higiene, onde muitas vezes não há acesso a eletricidade ou água corrente, o risco de contágio de doenças é bastante superior. Também na Índia, as medidas de isolamento social estão a provocar graves problemas sociais – 4 em cada 5 trabalhadores estão na economia informal, grande parte destes sem garantia de rendimento se não puderem trabalhar. A quarentena e o encerramento dos transportes levou a que milhares de pessoas tentassem regressar às suas regiões, tendo o governo reprimido os trabalhadores. E em países como o Brasil, o México ou a Nigéria, o elevado número de pessoas que vive em favelas complica o isolamento e leva a que se prevejam tempos difíceis no combate à pandemia.