Por uma Política Agrícola Comum mais útil para a sociedade e mais justa para todos os territórios e agricultores

A ministra da agricultura desafiou os grupos parlamentares a darem contributos construtivos para a produção do PEPAC. O Bloco de Esquerda respondeu ao desafio e entregou este Projecto Resolução estruturante para a transposição da Política Agrícola Comum em território nacional. 

 

Grandes mudanças e diversidade regional na agricultura portuguesa

Nas últimas décadas foram grandes as mudanças na agricultura portuguesa, com modalidades e ritmos diferentes, em função das especificidades territoriais.

De norte a sul de Portugal continental encontramos uma grande heterogeneidade edafoclimática, fundiária e socioeconómica que se traduz em diferentes necessidades e potencialidades, nomeadamente no domínio agroflorestal.

Considerando a estrutura fundiária distinguem-se dois tipos de territórios: uns a sul do Tejo, onde dominam as grandes propriedades e explorações agroflorestais do Alentejo e da lezíria e charneca do Ribatejo; o outro, onde prevalece, em geral, a pequena e média agricultura familiar e que abarca quer as terras a norte do Tejo quer o Algarve.

Em qualquer desses tipos há lugar a uma significativa diversidade.

No sul latifundiário, a mais importante clivagem opõe uma parcela que ocupa menos de um quinto do território, correspondente aos vales mais férteis das bacias do Tejo e do Sado e aos perímetros do Alqueva e outros servidos pelas infraestruturas coletivas de regadio, com condições propícias para uma agricultura mais rentável e intensiva, aos restantes quatro quintos com solos menos férteis e disponibilidades hídricas muito menores. O primeiro tem sido o alvo da grande agricultura agronegócio, internacionalizada, com elevado poder financeiro, tecnológico e comercial. No segundo, domina a grande agricultura de base fundiária, com base em sistemas de produção agro-silvo-pastoris extensivos, com os solos na sua maioria ocupados por pastagens pobres, associadas aos montados ou em terra limpa, sucedâneas das terras aráveis outrora cultivadas com cereais e outras culturas temporárias, que foram abandonadas à medida do desligamento das ajudas da Política Agrícola Comum (PAC).

Nos vastos espaços de domínio da agricultura familiar a diversidade é muito maior. O principal fator de diferenciação é o relevo (altitude e orientação) em conjugação com os contrastes entre a influência atlântica, a oeste, e a continental-ibérica, a leste. Supletivamente, a variação da latitude contribui para o esbatimento da influência atlântica e o acentuar da fácies mediterrânica quando se progride de Norte para Sul.

Temos assim os conhecidos contrastes e limites há muito desenhados por Orlando Ribeiro e outros geógrafos, entre o Norte Atlântico e o Norte Transmontano, que as montanhas do Vouga, do Minho e do Douro separam. No interior desses dois grandes conjuntos, surpreendem-se novos matizes: no primeiro caso, com a tripartição entre o Noroeste Atlântico (Minho, Beira Litoral e Montanhas que as flanqueiam a Leste), a Beira Alta e a Cordilheira Central, e no segundo com a distinção entre os planaltos e montanhas da Terra Fria Transmontana, e a Terra Quente talhada pelo Douro e seus afluentes.

Completam este mosaico de enorme diversidade geoclimática e paisagística do continente, as zonas a sul do Tejo de cariz não latifundiário, desde as terras do vale do Mondego e da Estremadura a oeste e sudoeste do maciço central, ainda muito diversas entre si, até ao Algarve (Serra e Litoral), a mais meridional e mediterrânica parcela de Portugal continental. Atenta esta enorme diversidade, a compreensão das necessidade e potencialidades das agriculturas e territórios rurais e o delineamento de medidas de política ajustadas à sua realidade e compreensíveis pelos agricultores e outros cidadãos, terá de se fundamentar em diagnósticos concretos que combinem a melhor informação e conhecimento disponíveis com a auscultação e participação pública.

Para se alinhar pelo interesse público, a transposição da PAC para Portugal, através do Plano Estratégico da PAC (PEPAC) 2023-2027, terá também de se basear na avaliação dos sucessos e insucessos da aplicação dos quadros anteriores, nomeadamente no que diz respeito à sua eficácia e eficiência na promoção da viabilidade económica das explorações agroflorestais, da sustentabilidade ambiental, da resposta à emergência climática e do desenvolvimento rural.

PAC não contribuiu para a redução de emissões

De acordo com o relatório especial do Tribunal de Contas Europeu (TCE), intitulado Política Agrícola Comum e Clima (junho de 2021), “a maioria das medidas apoiadas pela PAC tem um baixo potencial de atenuação das alterações climáticas” e a PAC não incentiva “a aplicação de práticas respeitadoras do clima eficazes”. Salientam a necessidade de aumentar os apoios destinados a “medidas de sequestro de dióxido de carbono, como a florestação e a agrossilvicultura”. Destacam também a necessidade de aumentar o apoio a medidas de precisão e eficiência do uso de fertilizantes químicos e estrumes, que representam quase um terço das emissões provenientes da agricultura (aumentaram 5% na UE entre 2010 e 2018). É de destacar ainda duas conclusões do relatório: 1) existem medidas da PAC que promovem o aumento de emissões; 2) o simples apoio à agricultura biológica e ao cultivo de leguminosas tem resultados “incertos” – o que se compreende, pois entre outros fatores os excessos de adubação podem ocorrer em qualquer sistema de produção e a origem dos fertilizantes é variável. 

O TCE cita um estudo de 2020, com base no qual afirma que a conversão de metade dos pagamentos diretos para suporte à redução de gases com efeito de estufa possibilitaria a redução de 21% das emissões da agricultura.

O TCE sugere que os Estados-Membros estabeleçam metas para a redução de emissões na agricultura e que os contributos das medidas da PAC para a mitigação das alterações climáticas sejam avaliados anualmente.

Muitas explorações agrícolas e territórios foram excluídos dos subsídios da PAC

Segundo o estudo “Cobertura do Território Agrícola do Continente pela PAC” (Cordovil, F. C. 2021), cerca de 40% das explorações agrícolas e 17% da Superfície Agrícola Útil (SAU) do país não beneficiam de quaisquer subsídios da PAC aos agricultores. Em algumas regiões as estatísticas demonstram um grau de cobertura territorial e socioeconómica ainda mais baixo. Seguem-se alguns exemplos: na região de Leiria as explorações agrícolas que não recebem qualquer subsídio representam 50% dos agricultores e da SAU; na Região Oeste, a exclusão afeta 83% das explorações agrícolas e 70% da SAU; no Algarve, são excluídas 71% das explorações agrícolas e 53% da SAU; na região de Coimbra são 51% das explorações e 37% da SAU.

Recentemente, vários órgãos autárquicos das regiões com graus de cobertura mais baixos do país manifestaram a sua preocupação e, entre outras medidas, recomendaram ao Governo que “a transposição da nova PAC, o lançamento e a gestão das suas medidas sejam realizadas com base em Diagnósticos Regionais – elaborados de forma participativa, com o envolvimento continuado das autarquias e outros atores locais – que identifiquem necessidades concretas e prioridades de intervenção com o objetivo de promover a equidade territorial e social, um uso socialmente útil dos recursos públicos, e o acesso de todos os agricultores aos apoios concedidos”.

Muitos subsídios foram transformados em rendas fundiárias

Mais de metade da despesa pública da PAC em Portugal depende essencialmente da área declarada ao IFAP, independentemente da mesma ser cultivada ou não, sem considerar o emprego e o nível de produção de bens e serviços. Sem monitorização nem metas estabelecidas para o aprovisionamento de bens públicos. Este quadro coloca a Beira Baixa, o Alentejo e o Ribatejo, juntos, a concentrar 52% da despesa pública da PAC, com consequências negativas para as agriculturas das regiões Centro, Norte, Algarve e Oeste, mas também para os muitos agricultores que, apesar de localizados em regiões mais beneficiadas, enquadram-se em sistemas de produção que não são abrangidos (ex. frutas e legumes).

Se analisarmos a despesa pública da PAC em função do trabalho agrícola, as regiões supracitadas mais beneficiadas auferem cerca de 10 vezes mais apoios por trabalhador agrícola que a Região do Pinhal Interior, e 5 vezes mais do que o Algarve ou que toda a faixa atlântica a norte do concelho de Mafra. A norte do Tejo localiza-se a maioria do emprego agrícola do país.

Este cenário foi possibilitado por decisões políticas nacionais que o perpetuaram até aos dias de hoje e levaram muitas explorações agrícolas de grande dimensão física a especializarem-se na captura de subsídios fundiários, na sombra dos pagamentos diretos e de medidas agroambientais de fraca exigência, como é o caso da Produção Integrada e da Agricultura Biológica em áreas de pastagem. Este é o motivo pelo qual os subsídios da PAC representam mais de metade do rendimento agrícola anual do Alto Alentejo.

A transposição da nova PAC decorre com repetição de “erros” do passado

A reformulação dos quadros comunitários nunca abalou a repartição dos subsídios da PAC em Portugal. O sistema de acesso ao Regime de Pagamento Base (em quadros mais antigos, Regime de Pagamento Único) manteve-se dependente de um histórico de produção dos anos noventa e os proprietários fundiários que têm reconhecimento e conta bancária declarada no IFAP podem continuar a candidatar-se e a auferir apoios em função das áreas declaradas, sem obrigatoriedade de produção de bens ou serviços. Muitos países decidiram reformular as suas regras em quadros anteriores, mas esse não foi o caso português.

Aquando da implementação do anterior quadro, que terminou em 2020, as regras comunitárias pareciam incompatíveis com a manutenção dos níveis de financiamento do RPU/RPB, mas não faltou criatividade ao Governo de então para resolver o problema: possibilitou um overbooking de 250 milhões de euros na medida agroambiental “Produção Integrada” que majorou os apoios a atribuir. Uma parte substancial das áreas declaradas tratava-se de pastagens pobres, muitas na verdade já estavam abandonadas, situação que se mantém até hoje. Mais de 600 mil hectares de pastagens, essencialmente localizados a sul do Tejo e a norte do Algarve são beneficiárias do RPB.

À entrada da nova PAC, que funcionará num regime de transição até 2023, o Governo decidiu subtrair 85 milhões de euros por ano ao pilar do desenvolvimento rural para possibilitar a manutenção dos níveis de pagamentos diretos (ex: RPB), mantendo a limitação de acesso a quem tem histórico do quadro anterior. Havendo maior imprevisibilidade sobre a agroambiental “Produção Integrada”, os beneficiários do RPB candidataram as mesmas áreas, declaradas como pastagens pobres, à medida “Agricultura Biológica”, que cresceu 400 mil hectares no Pedido Único de 2021. Se o IFAP aprovar e o Governo o consentir, perde-se desta forma – financiando maioritariamente pastagens pobres, áreas não cultivadas – uma parte substancial das verbas públicas destinadas a medidas ambientais e de resposta às alterações climáticas. Do ponto de vista do interesse público não há qualquer diagnóstico que sustente esta opção face às alternativas para o uso deste dinheiro público. Interpelada pelo Bloco de Esquerda na audição Regimental de 7 de Julho de 2021 a Ministra da Agricultura respondeu que não quer repetir o sucedido no passado com a Produção Integrada. Espera-se então que explique as orientações que vai dar quanto aos cerca de 650 mil hectares que se candidataram à medida agroambiental Agricultura Biológica.

Diagnósticos Regionais

De forma a melhor responder ao interesse público, a promover a equidade territorial e social, mas também para responder à crise climática e socioeconómica vigentes, a transposição da nova PAC deve basear-se na produção de diagnósticos regionais com alicerces participativos, para os quais é necessário mobilizar a cidadania, as estruturas democráticas de representação local, assim como profissionais e investigadores do sector agroflorestal e do desenvolvimento rural.

Não se conhecem diagnósticos regionais que tenham partido da iniciativa do Governo   ou da Administração Pública para suportar o delineamento do PEPAC e as muitas medidas a delinear. O Governo limitou-se a criar um Conselho de Acompanhamento, mas não tem divulgado os resultados da sua atividade, tendo havido demissões e manifestações de descontentamento no seu interior.

Apesar do PEPAC ainda estar em construção, o processo está a avançar e aparentemente algumas decisões fundamentais preparam-se para surgir como factos consumados. Além da pressão exercida sobre o orçamento do 2º Pilar, devido ao aumento de centenas de milhares de hectares nas candidaturas à Agricultura Biológica e à transferência de 85 milhões de euros por ano para o 1º Pilar para reforço das ajudas diretas ligadas ao arroz, ao tomate e ao leite, o Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) trabalhou uma proposta para aplicação em 2022 com um envelope de 12,6 milhões de euros a um pagamento ligado aos cereais, dos quais 10,2 milhões para apoio ao milho para grão, numa conjuntura em que o preço do milho se situa em máximos históricos. Contrariamente à informação que consta de um documento de trabalho do GPP a que o Bloco de Esquerda teve acesso e a algumas manifestações públicas de organizações que manifestaram regozijo com a medida, referindo em particular o milho grão (Presidente da ANPOC, na sequência de reunião com a Ministra no dia 16 de junho) ou que demostraram descontentamento com a mesma (ex: FENALAC), a Ministra da Agricultura recusou a ideia do subsídio à produção de milho para grão, no dia 7 de julho, em audição regimental. Contudo assumiu a existência de um pagamento ligado para os cereais cujo delineamento se desconhece mas que comporta imensos riscos, como nos ensina o historial quer de cultivos realizados apenas para captar o subsídio (o caso mais recente foi o do trigo rijo, que desapareceu logo que a ajuda cessou), quer de degradação de solos no passado. 

Houve, no entanto, organizações e investigadores que tomaram a liberdade de contribuir para o debate público e informado sobre as opções a tomar, produzindo diagnósticos e propostas concretas para algumas regiões e segmentos da atividade agroflorestal. Seguem-se apenas alguns exemplos de propostas que chegaram à Assembleia da República e/ou são do conhecimento público, sobre as quais se desconhece a aceitação do Governo:

O PEPAC deve responder a outras necessidades que carecem igualmente de diagnósticos e respetivas medidas em todo o país. São exemplo as necessidades crescentes de aconselhamento técnico-científico em todas as tipologias de exploração agrícola; a preservação de biodiversidade de interesse agronómico e alimentar (variedades, castas, raças, etc.) que está a sofrer grandes perdas a nível intraespecífico e necessita de reforço na conservação in-situ e ex-situ, assegurando a preservação de bases genéticas essenciais para a resiliência dos ecossistemas agrários. Esta medida é essencial para responder às alterações climáticas ao nível da mitigação e da adaptação e tem como ponto de partida o histórico de trabalho dos Bancos de Germoplasma Animal (Santarém) e Vegetal (Braga) assim como da Estação Nacional de Melhoramento de Plantas (Elvas) e dos agricultores e organizações com quem trabalham.

A informação suprarreferida é especialmente relevante no momento presente dado que o debate público sobre o Plano Estratégico da PAC para 2023-2027 vai agora entrar na sua fase mais importante e decisiva, pois o Governo anunciou divulgar a primeira versão completa já em julho, efetuar a “segunda fase de consulta alargada” em Agosto-Outubro e efetuar o “resumo do processo de consulta às partes interessadas e a análise de contributos e revisão das peças que constituem o PEPAC” em Novembro-Dezembro.

Este projecto visa também responder ao desafio lançado pela ministra da agricultura ao Parlamento na audição regimental de 7 de julho de 2021, para que os Grupos Parlamentares contribuam construtivamente com propostas para o PEPAC. Aqui estão as propostas mais valorizadas pelo Bloco de Esquerda para responder ao interesse público.

Ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda propõe que a Assembleia da República recomende ao Governo que: