Resgatar o corpo: perspetivas feministas
É evidente que a violência doméstica e de género têm de ser combatidas e que o movimento feminista tem um papel central nesse debate. É indispensável proteger as vítimas, responsabilizar as instituições públicas, punir os agressores. Mas o machismo não está só presente nas agressões físicas e verbais - é uma constante na nossa vida.
O modo como existimos é moldado por uma sociedade que nos quer controladas: vivemos num manual de instruções que nos diz exatamente como devemos comportar-nos ao longo da vida e nas diversas situações. Uma espécie de guião que, do nascimento à morte, nos lembra das obrigações que temos por termos nascido com uma vagina ou nos identificarmos como mulheres. A sociedade vai razoavelmente concordando que temos direito ao corpo, mas só se ele se vergar à lógica do consumo. E o que é o direito ao corpo? O que significa reclamá-lo do ponto de vista feminista? O corpo que nos autorizam a reclamar é o corpo patriarcal, um ideal feminino construído - não por nós próprias nem segundo as nossas determinações - mas um corpo que nos é imposto. Ensinam-nos a aceitá-lo sem questionar. Um corpo no qual nos encerram, mas que não nos permitem explorar. Quem decide o que aprendemos na escola? Quem faz e aplica as leis? Quem produz opinião na imprensa, nas revistas, na televisão? Quem dita as tendências da moda? Quem tem fundos para produzir cinema? Quem desenha as nossas casas, cidades e espaços públicos? Quem são os donos e os gestores das empresas? Maioritariamente homens, mas também mulheres. Em comum, a ausência de uma perspetiva crítica sobre as arrumações sociais que estruturam o sistema de dominação. Daqui resultam corpos domesticados, colonizados, e mulheres deles desapropriados.
Resgatar o corpo é, pois, uma tentativa de abrir janelas, de recuperar e reinventar uma parte tão importante das lutas feministas. Este dossier procura relacionar o corpo com o espaço público, analisando algumas consequências do poder patriarcal e propondo caminhos para a luta. É uma tentativa de contributo para um resgate do espaço, das instituições, das representações e do nosso próprio corpo.
Joana Pires, enfermeira, explica-nos, no seu artigo, de que forma o Sistema Nacional de Saúde nos instrumentaliza desde que somos adolescentes. A responsabilidade do planeamento familiar é exclusiva das mulheres, partem sempre do princípio de que somos heterossexuais e as nossas queixas vaginais são levadas pouco a sério - a não ser que queiramos ter filhos. Uma prova disso, é a endometriose ser tão tardiamente diagnosticada. Uma doença que afeta 10% das mulheres em idade fértil é sistematicamente subvalorizada pelos profissionais de saúde. Catarina Maia, ativista pela visibilidade desta doença, contribui para este dossiê com uma questão: “Quando seremos ouvidas?”.
A dicotomia entre o feminino e masculino está presente desde que nascemos, mas nem todas as pessoas nascem “menino” ou “menina”. Loé Petit, ativista pela consciencialização sobre as pessoas intersexo, descontrói a ideia de que os corpos intersexo são anormais e convida-nos a pensar sobre a binariedade patriarcal. A masculinidade e feminilidade são construções sociais patriarcais. Uma das provas mais evidentes está no nosso corpo: Porque é que a uma mulher se exige um corpo depilado e a um homem não?
O que representa esta dualidade de critérios? Ana Catarina Marques conduz-nos numa breve história da depilação provando que há dois pesos e duas medidas. O que tomamos por opção “higiénica” e estética é, afinal, uma opressão machista de ideal feminino. Ainda sobre o corpo, Patrícia Lemos, educadora menstrual e para a fertilidade, problematiza a ausência de auto-conhecimento. Apresenta-nos a Literacia de Corpo: o ciclo menstrual é um barómetro de saúde.
Quem tem acesso ao prazer numa sociedade patriarcal? Carmo Gê Pereira abre o leque das opressões sociais que ultrapassam as questões de género para uma Reflexão sobre o acesso ao prazer, associando-o com um sistema de opressão sistemática.
Introduzindo um olhar sobre o quotidiano, Cristina Vale Pires lança o mote: É tempo de desconfinar as mulheres na esfera pública(link is external). O assédio, a participação, a gestão da vida profissional, familiar e social - o lugar da mulher no espaço público é controlado, vigiado e determinado pelo patriarcado. Na rua, na imprensa, nas instituições públicas, quem tem o poder?
Por último, Andrea Peniche convida-nos a Ver para lá do espelho, a percebermos a linguagem como reflexo e expressão de poder, a segmentação do trabalho em produtivo e reprodutivo, em que um é reconhecido e valorizado e o outro é invisibilizado e desvalorizado, como injustiça e instrumento de exploração e a representação das mulheres no espaço público como um retrato de relações de poder patriarcais. E, perante tudo isto, a necessidade de fazer escolhas, num movimento que é diverso e tantas vezes contraditório.
Dossier:
Dossier 317: Resgatar o corpo: perspetivas feministas
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Resto dossier
Resgatar o corpo: perspetivas feministas
O movimento feminista tem sido tomado, por vezes, por um discurso vitimista, muito devido à centralidade da violência doméstica e de género. Que efeitos produz essa agenda? Que mulheres resultam de um movimento que as projeta quase exclusivamente como vítimas? Que sexualidade e corpos sobrevivem a uma narrativa de medo e dor? Dossier organizado por Ana Catarina Marques.
De espaços masculinos passamos a espaços segregados; agora, já fazemos a disputa pela paridade. No entanto, o sistema patriarcal-capitalista manteve-se e, por isso, a opressão e a exploração não são conversa ultrapassada, mas realidade quotidiana. Precisamos perguntar-nos se este modelo nos serve, se o que nos mobiliza, afinal, é a igualdade num sistema de dominação ou o fim da dominação. Artigo de Andrea Peniche.
Chega de assédio! É tempo de desconfinar as mulheres na esfera pública
Enquanto matriz estrutural e profundamente enraizada na nossa cultura, as formas de opressão e subalternização das mulheres ajustaram-se às novas circunstâncias, colocando-as perante múltiplas dicotomias e papeis difíceis de conciliar. Artigo de Cristina Vale Pires.
Prazer, uma questão de género ou de opressão?
O dito desejo sexual feminino é um dos maiores campos de batalha de forças sociais contrárias. Criam-se arquétipos: a reservada e a fatal, onde nenhuma age por prazer. Quem resiste é catalogada de insubmissa, inconformada e frigida ou ninfomaniaca, sem o correspondente satírico ainda em uso. A galdéria, a vadia, a autodeterminada. Artigo de Carmo Gê Pereira.
O ciclo menstrual vem sendo referido por entidades na área da saúde ginecológica e pediátrica como um sinal vital de saúde: deixou de ter um significado meramente reprodutivo.
Esta mudança é importante pois retira o foco da menstruação e instroduz o ciclo menstrual como barómetro interno de saúde. Artigo de Patrícia Lemos.
Depilação: uma construção patriarcal do “feminino”
À pergunta "porque é que nos depilamos?", as respostas começam sempre com a maior das mentiras sobre o nosso corpo: é mais higiénico. Depois passam para as questões estéticas: gosto mais assim, os pelos são feios. Por último, a toalha é atirada ao chão com “É uma escolha minha”. É verdade, é uma escolha nossa. Mas temos de perceber porquê. Artigo de Ana Catarina Marques.
Corpos escandalosos: binariedade patriarcal contra as pessoas intersexo
Hoje, e desde os anos 60, os médicos tentam "corrigir" os corpos intersexuais o mais cedo possível, com cirurgias e tratamentos hormonais. Estes actos médicos são praticados sem que a comunidade os peça e maioritariamente à nascença ou a crianças. Artigo de Loé Petit.
Endometriose: quando seremos ouvidas?
1 em cada 10 pessoas com vagina tem endometriose. Quando existem dores lancinantes, estas são menosprezadas. A proposta dos médicos é a pílula ou acompanhamento psicológico. O tabu da menstruação, o medo da ridicularização, a vergonha da dor que supostamente é normal e a desvalorização desta pela comunidade médica impedem-nos de conhecer a dimensão do problema. Artigo de Catarina Maia.
SNS: um Sistema Nacional de Saúde machista e heteronormativo
A saúde da mulher necessita de ser revisitada nos seus propósitos de forma a que consiga dar resposta à mulher no seu todo: corpo, saúde, contraceção e maternidade, estimulando e refletindo sobre as pressões que a cultura de género exerce sobre esta. Artigo de Joana Correia Pires.