A Saúde não é um Negócio [Newsletter: Lado Esquerdo]
O acesso a cuidados de saúde de qualidade, e de forma atempada, deve ser universal. É um direito constitucional que não pode ficar condicionado ou, por qualquer outra via, limitado pela condição económica de cada um, e bem. O Serviço Nacional de Saúde, o SNS, é esse mesmo preciso garante, especialmente para os mais pobres e mais frágeis. O SNS é uma das mais queridas e valorizadas conquistas de Abril. Independentemente da existência de entidades prestadoras de cuidados de saúde privados, um serviço público de saúde, universal, é condição necessária para uma existência plena, livre e democrática.
Desta premissa, é compreensível a frustração popular com o estado atual do SNS. Não tudo fazer para reverter o mantido decaimento em qualidade e prontidão de resposta do SNS é imperdoável. Mais, é negligente. O problema, conhecido por todos, o mesmo vivido pela generalidade dos serviços públicos, diga-se, não radica na qualidade dos seus profissionais, mas, sim, em carências prévias e estruturais, agravadas até a um estado de pré-colapso por falta de uma política clara que aposte e revigore o SNS. Esta ausência de um plano, a falta de um objectivo e missão, é duplamente preocupante. Preocupante não só porque, não havendo uma política de saúde estruturada, tal é sinónimo de prolongar o caos vivido diariamente no SNS, mas também porque, no entretanto, enquanto o marasmo reina, exceto com o recurso recorrente a medidas pontuais, transitórias e avulsas, os utentes que mais precisam do SNS desesperam, com tudo o que isso implica: atrasos no diagnóstico de doenças graves, agravamento de problemas de saúde crónico, acompanhamento clínico desadequado, além da perda de tempo entre idas e voltas aos serviços de urgência e, em desespero, como último recurso, a serviços privados, com o consequente elevado esforço financeiro nos já curtos orçamentos pessoais e familiares.
Ouvir o discurso de Manuel Pizarro é um autêntico conto do vigário, uma fraude, e fartos de burlas estão os portugueses. Querem, merecem, e exigem mais e melhores cuidados de saúde. Querem mais SNS. Esta maioria absoluta socialista é uma verdadeira máquina de propaganda, desde a Saúde à Educação, passando pela habitação e os transportes.
O mais recente e preocupante anúncio do Ministro da Saúde, Manual Pizarro, é relativo aos Cuidados de Saúde Primários (CSP).
Primeiro, para contextualizar, em Novembro de 2022, na Assembleia da República, perante já uma grave carência de Médicos de Família (MF) no SNS – na altura, mais de 1.4 Milhões de utentes sem MF, Pizarro, quando questionado pela deputada do Bloco de Esquerda (BE), Catarina Martins, sobre se equacionava a possibilidade da criação de Unidades de Saúde Familiar Modelo C (USF-C), uma autêntica aberração criada para dar uma borla aos privados, respondeu com um assertivo e imediato “Equaciono”. Após insistência, lá elaborou um pouco e, recorrendo a alguns dos chavões do costume que verborreicamente repete ad nauseam, acrescentou: “de forma supletiva, em uma ou outra localidade”.
O tiro de partida estava dado. Um estrondo tão claro, audível por qualquer um, que o mais surdo e distraído dos gestores dos serviços de saúde privados não aguardou por uma segunda chamada e, de forma pavloviana, começaram a preparar o terreno. O que antes era relativamente residual, agora é disseminado por todo o país, assistindo-se a uma abordagem agressiva por parte dos privados no desvio de MF do SNS, tendo em mente a perspectiva cada vez mais presente do que futura de afiambrar mais uns trocos com a criação de eventuais USF-C. São ubiquitários os anúncios televisivos, em jornais e revistas, ocupando páginas inteiras, e painéis publicitários estrategicamente plantados em estradas, cidades e vilas do país, incluindo o interior.
Se onde há carência de MF, a solução é USF-C, crie-se no SNS condições equivalentes. Estudos demonstram que USF-B, modelo de organização em que os profissionais de saúde recebem uma valorização salarial associada ao desempenho, apesar de maiores gastos com salários, são custo-efectivas. Portanto, o problema não é dinheiro. Há é falta de vontade política, associada a uma agenda de cedência aos interesses dos lobbies privados. Quando se explica que um MF recém-especialista recebe, no SNS, de forma grosseira e em termos líquidos, menos de 4€ por consulta, rapidamente se empatiza com os médicos que desistem do SNS para os privados ou para a emigração à procura, legitimamente, de melhores condições remuneratórias e de trabalho.
O episódio recente a que me referia há algumas linhas atrás era sobre o resultado do recente concurso para colocação de MF. Este concurso contou com 978 vagas, que incluiu todas unidades onde havia carência de MF. Foi algo positivo, porque, até aqui, assistia-se a concursos com número de vagas desajustado às necessidades reais, numa tentativa deliberada por parte da tutela em empurrar os recém-especialistas para zonas não atractivas, sem aí tentar criar as condições necessárias para os atrair e aí fixar.
O rescaldo do concurso trouxe algumas preocupações premonitórias. Ora veja-se. O balanço que o ministro fez deste concurso baseou-se num torcer dos números, travestindo, neste exercício, a realidade. Sim, é verdade que o concurso de 2023, em relação ao de 2022 e de 2021, captou mais recém-especialistas do total de MF formados, mas também é verdade que nestes dois anos prévios, o número de vagas foi abissalmente bem menor, e em regiões menos atractivas. A pretexto disto, anunciou, com as palavras que já lhe são costumeiras, que, “de forma supletiva e transitória”, existe a possibilidade de contratação de médicos estrangeiros. Não me querendo perder na análise dos prós e contras sobre a captação de médicos estrangeiros, quero destacar aquilo que o Ministro não disse. Não justificou porque só neste concurso abriu todas as vagas e com que objectivo. Não reflectiu sobre a incapacidade em preencher a totalidade das vagas, todas elas necessárias. Uma vaga que fica por ocupar, significa que cerca de 1600 utentes não terão acesso ao seu MF. E não enumerou qualquer estratégia a implementar para resolver o problema. Porquê?
Em plena fase final de negociações com os sindicatos médicos, que já levam mais de 10 meses, em que a revisão da grelha salarial é aspecto central, o Ministério não tem apresentado qualquer proposta concreta. Nenhuma! Terá desistido de investir no SNS e nos seus profissionais? Aguarda que o problema, por inércia, se resolva de forma espontânea? Observando o envelhecimento demográfico da classe médica, prevê-se um elevado número de reformas em 2023 e 2024, e que a situação se agrave.
Receio que a estratégia de Pizarro será argumentar que, apesar de se ter esforçado nas negociações sindicais, o país não pode acomodar esse esforço financeiro, e que tentou preencher todas as vagas disponíveis, mas não há MF suficientes. Será nesse momento, então, que irá mostrar a sua mão e abrir o jogo: privados nos CSP (USF-C), incentivando a desregulação e aumentando as assimetrias, e contratar médicos em saldo noutros países, para conseguir conter os aumentos salariais que se impõem.
Sr. Ministro, a Saúde não é um negócio. É um direito, e dele os portugueses não abdicam
Texto: Rafael Henriques