Unidade Local de Saúde (ULS) em Leiria: uma “peça” de Lacerda Sales [Newsletter: Lado Esquerdo]

No artigo sobre ULS do último Lado Esquerdo, de Fevereiro, assegurava que, na novela “ULS da Região de Leiria”, outros capítulos se seguiriam. Eis o próximo.

Este capítulo tem como protagonista o médico ortopedista, ex-secretário de Estado Adjunto e da Saúde de Marta Temido, atualmente deputado pelo Partido Socialista (PS) à Assembleia da República (AR) por Leiria e presidente da Assembleia Municipal de Leiria, António Lacerda Sales (ALS). É o ator principal de uma peça escrita pelo próprio, com apenas dois atos.

O prelúdio desta peça começa a 18 de Fevereiro, data em que se noticiava, até em meios televisivos, a participação de ALS, e durante um período de uma semana, em uma missão humanitária em São Tomé e Príncipe. Indubitavelmente, um ato nobre a um povo de que tudo precisa, mas, como se depreende do título e do intróito do presente texto, não é sobre isso que se vai procurar aqui discutir. É sobre ULS e cuidados de saúde, e os vários equívocos e contradições defendidos por ALS.

Durante a semana em que esteve em São Tomé e Príncipe, ALS divulgou dois artigos de opinião seus, um no Jornal de Notícias (“Unidades Locais de Saúde: a aposta na proximidade”), no dia 20 de Fevereiro, e outro, quatros dias depois, no Expresso (“Desafios para a última fronteira do SNS”), a 24 de Fevereiro. São estes os dois atos, necessariamente encadeados, de uma peça que perspira particularidades deliciosas, dando luz a muitos dos detalhes que, até qui, omissos, mas que agora se tornam mais claros. Ora veja-se.

No primeiro ato, no Jornal de Notícias, ALS introduz as ULS, fruto de um “espírito inovador” na integração de cuidados e, nas suas palavras, “o melhor instrumento que temos para organizar e aproximar o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”. Começa por descrever o desenho teórico das ULS previsto na lei, avançando, de seguida, para a evolução cronológica da sua disseminação no país (atualmente, oito), ao mesmo tempo que refere que se estão a criar mais quatro. Uma delas em Leiria. Afirma que, para resolver os “principais problemas da saúde”, as ULS têm “comprovados ganhos” e que é “evidente como as mais-valias das ULS” respondem aos “maiores desafios do nosso SNS”. Continua, sempre seguro das suas certezas, que “são o modelo certo” para “envolver ativamente as autarquias na governação e planificação do sistema de saúde”. Como remate desta primeira parte, para ALS, está “ultrapassada a dimensão técnica”, “resta-nos a dimensão política”.

Antes de se avançar para o segundo ato, demoremo-nos aqui um pouco. Primeiro, em relação às ULS serem o “melhor” instrumento, melhor em relação a qual outro? A alternativa de integração de cuidados prevista no Estatuto do SNS, e inscrita no programa do PS, e sob o qual ALS foi eleito deputado por Leiria, que são os Sistemas Locais de Saúde (SLS), estes estão por concretizar. Ou seja, compara sem legítimo comparador. Segundo, não concretiza ou desenvolve quais são os “principais problemas” ou os “maiores desafios do SNS” de forma a que se possa perceber como as ULS poderiam ser a solução para os mesmos. Terceiro, não cita de onde conclui os “comprovados ganhos” ou de onde extrapola as evidentes “mais-valias” para poder apontar a ULS como o modelo “certo”. No mínimo, é pouco rigoroso, mas sendo um artigo de opinião, reflecte a sua, tenha fundamento ou não. Pelo contrário, os poucos trabalhos dedicados ao tema apontam no sentido oposto, alguns da Entidade Reguladora da Saúde (2011 e 2015). Não só não há ganhos claros e reais em saúde, como a qualidade dos serviços de saúde se agrava. Por exemplo, a ULS de Matosinhos, num documento publicado na sua página institucional, com uma análise SWOT, aponta a integração clínica de cuidados, o eixo central de qualquer modelo de integração vertical de cuidados, como um ‘ponto fraco’. É auto-explicativo: o modelo falhou. Uma quarta nota, em relação ao “nosso SNS”, reveladora de uma completa desconexão com a realidade, em que já se contam mais de 1.5 milhões de portugueses sem médico de família (MF). Por último, sobre o envolvimento das autarquias, os SLS permitissem isso mesmo, além de preverem também o envolvimento dos sectores da Educação, da Segurança Social e da Protecção Civil. Ou seja, é uma falsa questão. Por fim, o que ALS procurou ultrapassar com este artigo não foi a “dimensão técnica”, que essa não tem qualquer substrato que a justifique, mas “a política”. E não convenceu.

Agora, no segundo ato, o palco coube ao Expresso.

Este começa de forma bem mais impactante. Pelo caos que se vive nos Serviços de Urgência um pouco por todo o país, em que o Centro Hospitalar de Leiria (CHL) é um exemplo paradigmático, onde, em menos de dois anos, se demitiram 3 diretores do Serviço de Urgência. Três! ALS quer agarrar a nossa atenção, e consegue. Ao contrário do truque tentado anteriormente, o do “nosso SNS”, este funcionou. Imediatamente, refere que resolver esta situação “é a mais premente missão do SNS”, “a última fronteira que permitirá decidir entre reforçar o SNS ou deixá-lo definhar e transformar-se num repositório inconsequente de disputa política e ideológica”. Uma autêntica panaceia. E o SNS só lhe pode estar grato por tal generosidade. Então, providentemente, passa a elencar 10 “soluções integradas”. E é logo aqui que se denuncia. “Integradas”. Paradoxalmente, a mensagem que ALS pretendeu como subliminar, quase que grita de forma reverberante, especialmente para quem prestou atenção ao primeiro ato. Sem nunca a nomear, mas de forma omnipresente, ao longo das medidas que apresenta, ALS parece querer ciciar algo mais: ULS

Neste artigo, ALS desenvolve alguns dos problemas do SNS, alguns de forma mais explícita (“escassez de recursos e dificuldades na organização”; condições de trabalho “aquém do desejável” e “burnout”) ou, indirectamente, pelas soluções que apresenta de forma avulsa e não sistematizada (“tratamento de ‘choque’ nas remunerações de todos os profissionais de saúde”; “mais e melhor gestão”; “reforçar os quadros”; “articulação”; “digitalização”). Aqui, pontualmente, denotam-se uns raros laivos socialistas, quase sindicais, escassos no governo de que fez parte. A atual equipa do Ministério da Saúde segue a mesma bitola: insiste estar a negociar, mas as propostas concretas são nulas. Quando na oposição, pode-se contar com um PS fervorosamente socialista, mas, quando poder, apenas veste os valores na lapela, nada mais. Um discurso desprovido de acção.

Voltando às soluções apresentadas, não há nada de novo. E, diga-se, todas são conseguidas sem necessidade de se criar uma ULS. Bastava haver vontade de dar seguimento ao preconizado no Estatuto do SNS: reforço da autonomia dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) e criação de Sistemas Locais de Saúde (SLS). O problema é que, como há muito se percebeu, essa vontade é débil.

O que é surpreendente na forma como são apresentadas parte das soluções é que, neste exercício argumentativo, confunde-se, ou procura-se ativamente confundir, um sintoma, o caos nas urgências, com o diagnóstico, isto é, o porquê dos vários problemas do SNS que radica nos baixos salários, não progressão nas carreiras, falta de condições de trabalho, sobrecarga de trabalho, burocratização, entre outras. O que é estrutural precisa de soluções de raíz. Precisa de uma cura e não de paliativos ou, muito menos ainda, de placebos em forma de siglas, com potenciais efeitos deletérios irreversíveis. Só dando respostas claras a estes problemas basilares é que tudo o resto se resolve, por consequência, nomeadamente o das Urgências, salvaguardando-se, claro, eventuais medidas conjunturais necessárias, sempre temporárias.

O problema nas Urgências só tenderá a agravar-se, deixando de ser pontual, sazonal, cíclico, para adquirir um cariz perene e de intensidade tendencialmente crescente. É simples perceber que quem, não tendo médico de família, vendo-se numa situação de doença, e não tendo recursos financeiros, terá, necessariamente, que procurar um serviço de urgência. Não tem outra alternativa.

Na minha opinião de espectador, o clímax deste segundo ato é conseguido quando ALS sugere o alargamento do horário dos Centros de Saúde (CS), que os Cuidados de Saúde Primários (CSP) “devem adequar-se à doença aguda” e ter “maior resolutividade”, e aproximar as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI) dos CS. Muito bem, mas pergunte-se o óbvio: com que recursos humanos e financeiros é que se vai concretizar tudo isto? Os atuais profissionais de saúde dos CSP no SNS não se multiplicam, nem é aceitável que mais tempo lhes seja roubado às respetivas vidas pessoais e familiares. Boa vontade, espírito de missão, resiliência, ou outro termo ou expressão que lhe queiram dar, tem limites e já foram há muito ultrapassados! Se ALS não tem estado atento, hoje existem mais 1.5 milhões de portugueses sem MF, e o número parecer galopar! O último concurso para MF, a nível nacional, abriu apenas 196 vagas, quando seriam precisas, no mínimo, 920! No ACES Pinhal Litoral (Batalha, Leiria, Marinha Grande, Pombal e Porto de Mós), onde seriam precisos 24 MF, abriram apenas 9 vagas, com apenas 3 a serem preenchidas. O desrespeito e o desconhecimento de ALS pela especialidade de Medicina Geral e Familiar (MGF) não é novo, como patente em declarações por si referidas a 15 de Julho de 2022, ainda membro de governo, em que falava em “médicos de MGF sem especialidade”. Aos não da área é merecida a explicação, aproveitando-se para recordar aos que, sendo da área, não têm estado atentos: MGF é uma especialidade própria, oficialmente reconhecida em Portugal desde 1990. Mais anos do que a primeira ULS e bem mais robustecida no terreno com ganhos inequívocos. Não há uma ULS que possa estar segura do mesmo.

Mais, o Ministro da Saúde (MS) do governo a que ALS dá agora apoio parlamentar não tem estado de boa-fé nas negociações com os sindicatos, numa ativa e alarmante passividade. Ou melhor, não está nas negociações de todo. Mas sim, para ALS, é agora que “é urgente um tratamento de choque nas remunerações”. Já não era urgente há uns meses atrás quando exercia funções executivas? Enfim, brinca-se. Esperava-se uma antítese, mas não uma de tão mau gosto.

E o orçamento para a Saúde, onde se inclui o SNS, vítima de uma suborçamentação crónica, cativações recorrentes e, atualmente, não ajustado à inflação, é agora que será expedito?

Se a peça que ALS compôs foi idealizada em forma ternária, fica-nos a faltar o desenlace. Aguardemos pelo terceiro ato.

 

Texto: Rafael Henriques