As nossas vidas importam
Temos todas o direito de estar seguras. De acordo com o artigo número 25 da Constituição Portuguesa, “a integridade moral e física das pessoas é inviolável”. A violência policial (utilização injustificada de violência por parte das forças policiais que é, geralmente, direcionada a civis desprotegidos) apresenta-se, portanto, como um atentado à coletividade social, criando insegurança advinda dos setores que a deveriam, por princípio, combater.
Quando pensamos na ação das forças policiais de uma perspetiva de análise étnico-racial, torna-se inevitável perspetivar o abuso e a violência imposta perante certas comunidades marginalizadas. O Comité Anti-Tortura (CPT) do Conselho da Europa lançou um relatório, em 2020, onde declara que os afro-descentes são os mais vitimizados(link is external) pela violência advinda destas forças. Movimentos com expressão internacional como o Black Lives Matter refletem estruturalmente o abuso policial como arma repressiva de um Estado fundado na escravatura e no racismo sistémico, visando a manutenção do status quo. É na violência institucionalizada que encontramos o gume mais afiado da repressão e da lógica neoliberal que governa as nossas vidas.
A desresponsabilização das forças policiais relativamente a assassinatos de afro-descendentes e a impunidade judicial que se evidencia nestas instâncias reforça as estruturas desiguais inerentes ao atual sistema sócio-económico. É este mesmo sistema que assassinou George Floyd, em Minneapolis, e que agrediu Cláudia Simões, na Amadora.
Também é esta política discriminatória que tem disputado a hegemonia nas estruturas internas das forças policiais. O descontentamento gerado pelas difíceis condições laborais nestes setores tem criado grande espaço de manobra para a captação política por parte de forças extremistas de extrema-direita. O Movimento ZERO tem vindo a demonstrar a sua força junto dos trabalhadores da polícia, sem esconder a sua cumplicidade com as forças de direita populistas, vendo-se institucionalmente representadas na figura do deputado André Ventura. O caso específico do polícia Manuel Morais, agente principal do corpo de intervenção da PSP, também evidencia a forma como as vozes que se apresentam contrárias a este fenómeno são silenciadas. Este sindicalista foi crítico da ação policial em muitos bairros periféricos, evidenciando a índole racista que motivava muitos dos comportamentos dos seus colegas. Esta denúncia trouxe-lhe muitos dissabores tendo sido suspenso quando chamou o André Ventura de "aberração" na sua página de Facebook(link is external). O seu comportamento humanista de combate pela melhoria das condições laborais de nada lhe valeram quando repetiu o mesmo que vários relatórios já indiciavam.
O que torna difícil a conversa sobre brutalidade policial é o facto das vozes que se insurgem contra esta desigualdade serem as menos escutadas na nossa sociedade. Baldwin dizia que na sociedade norte-americana os afro-americanos não eram contabilizados como parte da população, logo, as suas confissões eram naturalmente fraudulentas. E, nas raras ocasiões em que estas denúncias são investigadas, é a polícia responsável por averiguar a sua própria conduta. Onde é que se colocam as problemáticas da neutralidade? Ou, como se grita nas mobilizações, a quem se liga quando a polícia mata?[1]
Hoje celebramos o dia internacional contra a discriminação racial. E estamos cansadas - já sofremos estas discriminações há demasiado tempo. E não toleraremos mais nenhuma. Encontramos no racismo mais uma forma de legitimação do sistema sócio-económico e reconhecemos a organização coletiva como forma cerrada de travar esse combate. A luta pela igualdade não é um ato de filantropia e não se resume à mera ajuda- existe para defender a vida. E sempre que houver ameaças à vida encheremos as ruas, como o país que fez Abril nos tem ensinado, cantaremos em plenos pulmões uma única reivindicação: as nossas vidas importam.
Nota:
[1] Jarvis DeBerry, Columnist. "James Baldwin's 1966 Essay on Police Brutality Seems No Less Insightful Today." NOLA.com. July 12, 2016. Accessed March 16, 2021. https://www.nola.com/opinions/article_7537bfea-e1bc-5d02-946b-371cd7ee13...(link is external).
Artigo publicado no P3 a 21 de março de 2021.