VIVER MELHOR EM LEIRIA [Newsletter: Lado Esquerdo]
Na sequência de iniciativas semelhantes realizadas noutros pontos do país, a Infraestruturas de Portugal (IP), juntamente com o Governo e a CIMRL, promoveram no passado dia 25 de maio uma Conferência em Leiria intitulada “A ferrovia como chave da Mobilidade”.
O título sugere que seriam abordadas diferentes componentes da Ferrovia e como esta poderia constituir a chave da Mobilidade no futuro da região. É um mote apelativo, que impressiona qualquer um. Mas infelizmente, não passa disso. Recentemente (15/06/23), o ex-ministro Pedro Nuno Santos, em audição na CPI à TAP, disse algo que me remete diretamente para o mote desta Conferência: “não vou mentir só porque a mentira parece mais credível do que a verdade”. O mínimo que se pode dizer é que a forma como o governo e o poder autárquico nesta região entendem “a ferrovia como chave da mobilidade” soa mais como mentira do que como verdade.
Ferrovia em Leiria: verdade ou consequência?
Como diria o poeta Aleixo “P'ra mentira ser segura, E atingir profundidade, Tem que trazer á mistura, Qualquer coisa de verdade”. A coisa verdadeira é que a futura Linha de Alta Velocidade (LAV) terá uma paragem em Leiria - na atual Estação CF da Barosa. Essa circunstância, irá trazer a Leiria uma nova centralidade para a Região e para o país. Isso é indiscutível. Mas daí até ser “uma revolução” é algo que está muito longe de acontecer. Neste caso, a escolha da consequência - uma revolução - está mais próxima de um jogo de palavras, típico de adolescentes, do que “a verdade” que se vislumbra para a ferrovia em Leiria.
De facto, o que há de verdade para além do anúncio da nova LAV? Que a ferrovia será a chave da mobilidade na região? Duvidamos. Segundo as apresentações, assinala-se que “em menos de uma década Leiria fique a menos de uma hora de Lisboa ou do Porto”. Ver-se-á se as previsões até 2030, se confirmam. Mas o mais surpreendente é o “argumento” do Sr. SEI (Secretário de Estado das Infraestruturas, Frederico Francisco): “será plausível viver em Leiria e trabalhar em Lisboa”. Eis mais um exemplo de como os membros deste governo se descaem na sua idiossincrasia de referência a Lisboa, sendo tudo o resto, no país, mais ou menos, paisagem. Com pensamentos estratégicos tão “profundos” não surpreende que pouco se tenha falado do que está à volta dessa dita centralidade de Leiria no contexto da futura AV.
As mudanças indispensáveis na mobilidade regional
Falamos de quê quando referimos o que está à volta? Falamos do futuro da Linha do Oeste e a da sua interligação com a LAV em Leiria; da criação de uma nova interface multimodal junto à Estação; e de uma mega melhoria nos sistemas de mobilidade e de transportes na região.
A interligação ferroviária é direta – mérito da IP, que projetou a nova linha. Mas que mudança serão necessárias para que Leiria seja uma nova centralidade ferroviária na Região? Como é que a Linha do Oeste alimentará a LAV (e o contrário também será verdadeiro), para que os passageiros beneficiem efetivamente de reduções de 300% nos tempos de viagem anunciados para as ligações a Lisboa ou Porto?
Atente-se, por exemplo, na Linha do Oeste e na interface com a LAV. Disse o SEI que será “razoável esperar pelo menos dois comboios por hora/sentido, pelo menos um por hora/sentido a parar em Leiria”. Logo, para a consequência poder ser verdadeira, será necessário que o número de comboios a circular na Linha do Oeste tenha uma frequência equivalente à da LAV.
Ora, qual é presentemente a frequência dos comboios da LO para Norte e Sul de Leiria? Quatro (4) por dia/sentido! Não, não me enganei: são mesmo 4/dia/sentido. Como se anuncia que a LAV terá uma frequência de 1 comboio por hora, em cada sentido, tal significará que, para garantir que o interface ferroviário funcione como distribuidor das deslocações dos passageiros na Região (e admitindo, 12h úteis de funcionamento/dia) será necessário que a CP triplique o número total de comboios a funcionar em cada sentido na Linha do Oeste.
Porque não se falou disto na Conferência? É a pergunta que fica sem resposta. Pelo andar da carruagem, deduz-se que os nossos governantes estão mais focados na ideia do Sr. SEI de “viver em Leiria, e trabalhar em Lisboa” do que Leiria vir a ser “a chave da Mobilidade ferroviária na região”.
E a prova de que a proclamação da “ferrovia ser o centro da revolução” não passa de mais uma das mentiras com perna curta é a ideia peregrina de uma “solução” de Metrobus para as ligações rápidas entre Leiria/Marinha. Como o jornalista Carlos Cipriano disse na Conferência, depois de denunciar “as modernices” por parte de autarcas a quem lhes é vendido esse projeto “como se fosse o futuro”, aconselhou a CIMRL a explorar a atual LO com base numa ligação ferroviária rápida não só para MG mas também intrarregional por forma a satisfazer as necessidades de mobilidade na região e, futuramente, no acesso à LAV.
Como ficou dito, e bem, tal solução será muito mais barata, ecológica e sustentável que os custos de um Metrobus. Note-se que, no caso do Metro do Mondego, esses custos já ascenderam a 900.000€ por autocarro elétrico articulado para um lote de 40 cuja duração não ultrapassa os 12 anos. Comparar esta “solução” com o comboio elétrico que passará a circular na LO é simplesmente risível e cheira a mais a negócio do agrado de certos autarcas na região.
Estação CF Barosa: um novo interface para uma nova mobilidade
Outra dimensão completamente ausente desta conferência é o lugar que a LAV vai ocupar no sistema de mobilidade regional. Tal como acontece em quase todas as estações de comboios, à sua volta constroem-se importantes interfaces de transportes públicos de impactes locais e regionais cujo desenho integra obrigatoriamente serviços de autocarros urbanos e regionais, soluções de mobilidade suave partilhadas e parques de estacionamento públicos.
A julgar pela reportagem do RL (edição de 01/06/23), nada disso se falou. O que não quer dizer, que não possa acontecer. Mas vai ser preciso muita discussão pública. Por exemplo: o que se discute atualmente é uma nova Estação de Autocarros junto ao Estádio. Que se deva retirar a Estação de Camionagem do sítio onde está, estamos de acordo. Mas ignorar que, daqui a 7 anos, vamos ter o comboio de AV a chegar a Leiria e não equacionar a construção de uma interface multimodal de transportes à volta da Estação é verdadeiramente, negar que a ferrovia possa ser a chave da mudança da mobilidade na cidade.
A nova estação tem de ser uma interface central da mobilidade na região, seja nas ligações com a Linha do Oeste ou LAV, seja nas ligações aos Transportes públicos para origens/destinos adjacentes.
No último Census 2021, o perfil da mobilidade diária em Leiria era que apenas 7% se fazia em TP, 80% em automóvel e a restante a pé ou bicicleta. Se queremos uma mobilidade mais sustentável e mais democrática, acessível a toda a população, é obrigatório apostar numa melhoria gigante dos TP (horários, frequência, tecnologia veículos, gratuitidade, etc).
Viver melhor em Leiria e não viajar melhor para Lisboa, tal deverá ser o mote da mudança de mobilidade que queremos para a cidade e a Região.
Texto: Heitor de Sousa